Nesta vinda de automóvel desde o Rio até ao sertão do Ceará a ideia da viajante era descrever a estrada e as peripécias do percurso, e a surpresa que são as grandes cidades da Bahia e de Minas surgindo milagrosamente em meio do caminho.
Sim, havia tudo isso para dizer e muita coisa mais, — porém a assombrosa beleza deste sertão no inverno não deixa lugar para nada. Serras, tabuleiros, catingas, campestres, está tudo de um verde violento — e além de verde está tudo em flor. Quando se sai dos ásperos sertões do São Francisco, (onde o inverno nem transparece no pedregulho, pois entre os seixos do chão apenas despontam xiquexiques e unhas-de-gato) e se ingressa no vale do Cariri, ah, meu irmão, subindo aquelas ladeiras, avistando de cima aqueles vales, tudo é tão bonito, tão bonito que dá uma dor no peito. As tonalidades do verde não têm fim, é o verde-maçã do pastinho novo, é o verde-bandeira do mata-pasto, é o verde-limão do marmeleiral, é o verde-mar da catinga junto à linha do horizonte, é o verde-francês dos juazeiros, é o verde-negro das mutambas e o verde-petróleo das velhas oiticicas, nas coroas dos riachos. E como já estamos no mês de maio, todo aquele verde rebenta em flor; as juremas escondem os espinhos debaixo dos cachos brancos, as manjeriobas do Pará são enormes corbeilles de loja e as moitas de mofumbo cobrem-se de amarelo como um resedá gigante, apenas com um cheiro muito mais violento. E nos açudes e lagoas as aguapés derramam perfume feito mel e não há tabuleiro nem campestre que não esteja estrelado de florezinhas amarelas, cor-de-rosa, azuis, vermelhas e brancas. Pelas cercas das jitiranas vestem tudo de lilá, as catingueiras são grandes manchas amarelas, e os paus brancos em flor parecem buquês de noiva.
Nos pastos as vacas comem inquietas, pensando nos bezerrinhos novos que ficaram presos nos cercados esperando a mamada da tarde; as ovelhas saem para o campo cada uma com o seu cordeirinho, às vezes com dois; os cabritos parecem bichos de brinquedo, saltando buliçosos dos altos de pedra, os mandacarus estão cheios de ninhos de rolinha e os galos-de-campina criam filhotes no pé de turco do terreiro.
A água se infiltra por toda parte em ipueiras que até parecem igarapés do Amazonas. Mas é só na fartura de água que se pode fazer alguma comparação amazônica. Pois nada há mais de semelhante, nem o calor úmido, nem a sufocação da mata, nem a presença constante da escuridão da chuva. Aqui o céu é sempre claro, as nuvens de chuva vêm e vão, e quando anoitece é tão acesa a luz das estrelas que é como se houvesse sol atrás delas, alfinetando a casca da noite.
Nos açudes os sangradouros se despertam numa fita de água que salta dois e três metros, os peixes começam a escalada das cachoeiras, tão numerosos, brilhantes e atrevidos que a gente os apanha com as mãos nuas, enquanto toma banho.
E passam os vaqueiros encourados, montados nos cavalos gordos, em procura de algum barbatão sumido no mato; os queijos crescem de tamanho, o milho nos roçados já passou de verde, está zarolho, bom de cuscuz, o padre promete vir fazer a desobriga, e ninguém pode andar de automóvel nem de trem, nem de nada, por causa do inverno. Isto é, de automóvel não se anda porque não há estradas para eles passarem, e os trens da RVC porque, coitadinhos, não têm carros, não têm locomotivas, não têm via permanente, não têm coisa nenhuma, só a boa vontade heroica do pessoal que faz o milagre de pôr a andar aquelas máquinas, muitas das quais ainda são dos tempos em que nós éramos meninos, — a 109, a 110, a 201, nossas velhas conhecidas de infância, sendo que o maquinista da 109 era o Rodolfo e o da 110 era o Abílio Costa — digo isso para verem como me lembro mesmo.
Se o governo não mandar o dinheiro pelo qual choramos e clamamos a fim de reaparelhar a estrada de ferro, este sertão todo se embelezou à toa, o milho perdeu o tempo em ser plantado e em crescer e o algodão, — não valerá a pena apanhar algodão porque para que plantar, limpar, apanhar, descaroçar, enfardar, — se não se pode vender nem o legume nem a lã?
E assim terá sido perdido o trabalho até mesmo de Deus Nosso Senhor que procurou reparar as faltas do passado mandando este ano um inverno tão bom; pois sem vender o que colheu, vende o milho, o feijão, a farinha, o algodão, os queijos, tudo que fez com tanto trabalho e tanta alegria se estragar sem proveito senão para os ratos, a gente não saberá mais o que é pior, se seca mesmo, como nos outros anos, ou se um inverno milagroso destes, porém desperdiçado. É até um pecado mortal, pensar numa coisa dessas.
Deus faz correr a água, mas o governo é que faz correr os trens, portanto o governo que bota a mão na consciência e nos mande um dinheirinho, não é para luxo, não é para asfalto, é só para trilho, dormente, máquina, carros de carga e pessoal.
E não é esmola não, nem é presente. É empréstimo, e a juro muito alto, que num ano como este de 1955 nós pagamos tudo, principal e interesse; dever, mesmo, só ficaremos devendo o favor.