Li no jornal que acaba de ser preso um homem, por nome Antônio de tal, morador na estrada do Cabuçu, assassino confesso de mais de 60 cães.

Quando o apanharam, por denúncia de certo cavalheiro, o vilão armado de espingarda liquidara um cachorro a tiros e ferira três outros. Mas nem sempre era a tiros que os matava; servia-se em geral de formicida, impregnada num pedaço de carne. Perdia nesse imundo trabalho tempo, dinheiro, paciência, mas se dava por bem pago quando contemplava as vítimas escabujando nas vascas da morte. Matava qualquer um, matava indistintamente. Não odiava este ou aquele cão, odiava a todos. Preparava em casa suas iscas mortíferas, carregava-as para a rua e lá as semeava. Não se comovia com a inocência de algum cãozinho de colo, transviado dos carinhos da dona, que por acaso aparecesse na calçada. Como não o comovia a humildade jovial dos vira-latas (também hoje chamados “flor de asfalto”) que sentindo o cheiro da carne se chegavam junto do monstro, abanando o rabo e implorando uma xepinha. Imparcialmente distribuía a morte — e gozava.

Em consequência da denúncia, foi chamado à delegacia. Mas não sei o que reza a lei penal brasileira a propósito de crimes dessa natureza. Talvez nem reze nada. O jornal diz que o homem será processado, mas não tenho muitas esperanças disso. Provavelmente o mandarão embora depois de uma reprimenda do delegado, pois o fato é que entre nós a crueldade com animais não é punida nunca. No entanto, que diferença faz entre esse Bórgia canino e outro assassino qualquer? O que ele merecia era purgar 30 anos de cadeia ou, caso se provasse a sua insânia, ser internado no manicômio judiciário como alienado perigoso.

Há pouco, em Berlim, foi apanhado um sujeito acusado do assassínio de cerca de 40 mulheres. A esse já o esterilizaram, já o condenaram, nem sei mesmo porque ainda não está morto. E, contudo, matar 60 cães inocentes supõe malícia muito mais perversa do que matar 40 mulheres. Cão é um bicho bruto, sem maldade e sem vício, enquanto a mulher é por definição a aliada do demônio, a fonte de todo mal e de todo o pecado. Quero dizer com isso que o homem das mulheres talvez as imolasse por convicção religiosa, por motivo ético, por um movimento superior da alma. Enquanto o matador de cães cedia apenas a um instinto demente de carrasco, matava por matar, para ver sangue, para ver os cadáveres. Um podia ter motivo ideológico — com toda probabilidade o tinha — o outro é apenas uma fera.

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De todos os lugares comuns, ditados e anexins que correm mundo, nenhum há mais verdadeiro do que aqueles que atestam a amizade do cão pelo homem. Porém, o que me encanta nessa amizade é a capacidade que tem o cão de escolher, de eleger, de amar especificamente determinada pessoa e não qualquer uma. O cão conduz-se na escolha de dono como nós nos conduzimos na escolha da pessoa amada com a diferença apenas de que nós depois variamos e o cão não varia nunca. O seu ato de dedicação é um gesto inapelável e fatal, ao qual deve ser fiel até à hora da morte. Em geral, toma de pequenino essa decisão que lhe vai orientar a vida inteira. Mas amando tão incondicionada e apaixonadamente o indivíduo, de certo modo o cão detesta a espécie, e nisso vejo o seu mérito maior. Entre todos os homens só lhe serve aquele homem. Os demais seres lhe são antipáticos ou odiosos, ou na melhor hipótese, quando a necessidade o obriga a viver em promiscuidade com os humanos, lhe são indiferentes. Enquanto tiver no corpo um suspiro de vida será apenas fiel, amante, submisso, escravo, daquele a quem dedicou o coração quando mal abria os olhos para o mundo. Acompanhará o dono em tudo, mesmo no que lhe pareça mau e errado, mesmo no que considere morte certa. Por montes, vales e ruas o seguirá, e embora detestando a água, até na água se aventura para lhe obedecer a voz. É-lhe indiferente a categoria do seu senhor no rol dos valores humanos — para si ele é rei e deus — rei e deus da sua própria eleição. Sendo por acaso cachorro de cego não se trocará por um cachorro de príncipe e, antes disso, ladrará contra o príncipe e suas pompas. Pode o seu dono cair na miséria, ser preso e apedrejado, ser o último dos homens. Pode ficar coberto de feridas como Jó. No dia em que abandonado do último filho, do último amigo, estiver o dono raspando as chagas com o clássico pedaço de telha, ao lado terá festivo e imutável, abanando o rabo, o cão que veio dos tempos de rico e continua o mesmo nos seus tempos de miséria.

Seria o cão o único ente perfeito neste mundo imperfeito, se o não perseguisse a maldição da raiva, a doença misteriosa e sinistra que o envolve com uma espécie de névoa rubra e fá-lo desconhecer e atacar tudo que antes amara. É decerto a velha marca de Caim, que estigmatiza não só os homens como também aos bichos. Mas tão leal e fiel é a natureza do cão, que primeiro tem de ficar louco para poder renunciar ao seu voto de amor e dedicação:

No norte, acreditamos que um espírito mau possui o cachorro hidrófobo; quando o cão doido nos ataca, não é ele o autor do mal, mas o incubo que o domina. Por isso, em vez de dizermos que o animal está com raiva ou está danado, dizemos que ele “está espritado”, ou que “espritou-se”.

Rezamos com oração forte o amigo possesso e lhe fazemos exorcismos tal como se procede com cristão atentado pela malícia do demônio. E mesmo quando a gente se vê na contingência extrema de abater o cão enfermo, existe uma reza que se diz como voto de reparação na hora do sacrifício:

“Não és tu que eu mato com este pau, meu cachorro de caça; estou matando o mal que te dana, expulsando o espírito que te esprita, a fim de consumir o que te consome”.

rachel-de-queiroz
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