O governo é o grande amigo do teatro. O governo considera o teatro indispensável à cultura e à educação do povo. O governo, através do órgão competente, que é o Serviço Nacional de Teatro, subvenciona as principais companhias teatrais do país ― ou do Rio, não sei bem.
Tudo isso é ponto pacífico. Não há presidente, por mais desinteressado que seja das coisas de inteligência, que se furte ao título de protetor e benemérito do teatro, pois bastaria essa atitude como uma garantia segura de impopularidade.
Mas a verdade real, a verdade verdadeira é que, ou por falta de uma orientação adequada e uniforme, ou por falta de um planejamento objetivo que, parece, ainda não foi feito, ou até, segundo se grita, por culpa de desunião e desentendimentos dentro da própria classe teatral, ― a verdade, dizíamos, é que a proteção que o governo oferece ao teatro tem produzido muito poucos frutos. Basta que lembremos a chaga principal, o problema-chefe: a inexistência quase completa de casas de espetáculo, os alugueres abusivos das que existem, o abandono, as portas fechadas de bons e tradicionais teatros, por falta de interferência enérgica do governo.
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Ainda ontem, em conversa com minha amiga, a grande atriz Bibi Ferreira, discutíamos o encerramento da sua temporada no Dulcina (deve ceder o teatro a outra companhia) e a sua projetada turnê pelo Norte. Bibi me declarou que continua com o seu projeto de viagem pelo Norte, mas ― escutem! ― como diretora de uma companhia de revistas. E por que não vai a nossa estrela de teatro declamado, a diretora vitoriosa de tantas peças que marcaram época e ganharam prêmios, por que não vai Bibi se apresentar às capitais do Norte do país, que ainda a não conhecem, com o seu excelente repertório de comédia e drama? Por que não apresentar às plateias nortistas peças como Senhora, como Moreninha, como A herdeira, e outras tantas, do repertório nacional e internacional, onde Bibi aparece no pleno domínio dos seus recursos excepcionais de atriz e diretora? Bibi responde simplesmente:
― Não posso ir com o meu repertório porque não posso enfrentar as despesas de transportes da companhia e dos cenários. Um repertório de comédia é um repertório oneroso: exige atores de maior categoria, maiores ordenados. Exige uma infinidade de cenários complicados, custosos, variadíssimos. Senhora, por exemplo, é montada num palco giratório, dada a multiplicidade dos seus quadros. Outras peças, como A herdeira, exigem móveis da época, que tive que desenhar e mandar executar especialmente. E as passagens dos artistas? Não, embora desolada, como tenho de ganhar a vida e como só me interesso por ganhar a vida dentro da profissão, vou para o Norte com um elenco de revistas, de êxito mais fácil, cenários em menor número e mais portáteis, repertório menor, elenco menos caro...
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Agora a gente pergunta: e o Loide? E a Costeira? Por que não se concretiza em fatos a famosa proteção do governo ao teatro, e o governo não concede às companhias teatrais idôneas, que programem turnê pelo interior, passagem livre nos seus navios? Não precisava dar um tostão em espécie. Era apenas dispor de algumas passagens nos paquetes do Loide e um pouco de espaço nos seus porões para os cenários. Não iria custar um dólar, já que são os dólares que nos faltam. Mesmo que o Loide esteja na péssima situação que se diz, não seria esse transporte que o iria arrastar à falência. E se, ao contrário, o Loide está se endireitando, o rombo não lhe estorvará o progresso.
Faço meu o apelo de uma grande atriz, representante legítima de sua classe como atriz e empresária que o é. Este governo, com tanto homem inteligente, com tanto homem que sabe a importância do teatro para a cultura do povo, esse governo poderá medir o alcance da concessão de frete livre nos seus navios para as companhias teatrais itinerantes. Apelo para os nortistas no governo, e especialmente para o nortista mais graduado na hierarquia, que é o presidente Café Filho. Sua Ex.ª deve recordar que acontecimento é a presença de uma boa temporada de teatro nas pequenas capitais do Brasil. A efervescência que cria, a provocação à inteligência, e ao bom gosto, o desabrochar de vocações. Um bom elenco de teatro nos palcos de província é mais importante para a população local do que um elenco europeu no palco do Municipal, aqui. Mais importante porque além do valor puramente cultural, um elenco carioca, “federal”, ao visitar a província, é elemento de união nacional, de confraternização brasileira. O provinciano, vendo nos palcos da sua terra o mesmo espetáculo que o carioca viu no Rio, sentir-se-á menos abandonado, menos esquecido, menos ressentido. Quantas vezes, em Manaus, em Fortaleza, em Natal ou em Goiânia, fomos aplaudir algum desses heroicos mambembes que, desajudados de qualquer auxílio oficial, para lá se tocavam, com os seus cenarinhos de papel pintado, com seu elenco de segunda ou de terceira e repertório idem, mas de qualquer forma representando o teatro, respondendo pelo teatro, vanguarda humilde do teatro verdadeiro, e nem por isso menos teatro!
E depois de todas estas considerações e lembranças, atrevo-me a apresentar uma proposta: o governo poderia fazer um teste: dar, a título de experiência, as passagens e o transporte a Bibi Ferreira, para esta sua projetada turnê pelas capitais do Norte. Os títulos de Bibi não padecem discussão, e já há um precedente muito simpático para essa concessão de frete teatral, criado pela Central do Brasil.
E podem esperar os resultados. Juro que serão compensadores, senão em dinheiro, o que afinal não é o objetivo do governo, mas em rendimentos de cultura, de intercâmbio intelectual, de prestigio ao artista, e ao público provinciano. Será essa uma forma suave e efetiva de subvencionar companhias sem dispêndio de dinheiro. E se a experiência aprovar, o favor poderá ser estendido a todas as companhias idôneas, que queiram se aventurar em excursões pelo interior do país.
E em nome do teatro brasileiro, do qual sou uma humilde, mas devotada crente, espero que o governo aceite a sugestão de Bibi Ferreira e faça o teste. E depois colha bons frutos, benza Deus.