Sim, é esse um dos resultados principais da Segunda Guerra Mundial. Prometiam democracia, prometiam as quatro liberdades, prometiam abolição da guerra, prometiam segurança e justiça, mas o resultado principal foi esse: treze milhões de órfãos. E a democracia não veio; não veio uma só, quanto mais quatro liberdades; a nova guerra já nos bate às portas; — o haver não é nada enquanto o dever é imenso. 

Quem tem coração neste mundo e não pensa com ternura e agonia nessa cifra assustadora de crianças sacrificadas? Treze milhões — e só na Europa. Num continente ainda caótico, com os seus governos mal fixados nos postos recentes, as organizações de assistência social dando rendimento mínimo, a luta de esquerda e direita e a preocupação com a nova guerra absorvendo todos os interesses. Quem tem tempo para cuidar desses órfãos?

Pois felizmente ainda existe gente que encontra tempo para cuidar neles. Existe um Conselho Mundial para a Educação da Infância, prestigiado pela UNESCO, cuja presidente, Lady Allen, foi a divulgadora dessa cifra de treze milhões e cuja preocupação no momento é salvar essas crianças. Existe uma Obra de Crianças Mutiladas de Guerra mantida pela Cruz Vermelha; a presidente da seção francesa, a baronesa Mallet, há pouco tempo andou por aqui e escolheu para delegada da Obra em toda a América um nome que todos vós já conheceis, do qual já vos falei aqui mesmo, a propósito de outras empresas de caridade — a poetisa Béatrix Reynal.

Parece impossível dar auxilio a quem está tão longe e em tão grande desamparo. São tantos e tão feridos! Órfãos no sentido mais dramático da palavra: despojados não apenas dos pais, — mas despojados igualmente de patrimônio, de tutor, de um lar, de assistência, até de pátria — órfãos da orfandade mais completa e mais nua.

E além de órfãos, mutilados. Isso mesmo: crianças, meu Deus, crianças, sem pernas e sem braços, de faces queimadas, de olhos cegos. Crianças nevrosadas, chocadas, de espírito talvez mais ferido ainda que o corpo, atingidas pela guerra de maneira talvez irreparável.

Felizmente esse grupo de mulheres ilustres tomou a ombro a tarefa. Colhem esmolas, angariam auxílios dos governos, reúnem recursos de toda procedência e toda natureza e vão fazendo o que podem. Compreender que a vida e o amparo desses treze milhões de órfãos é responsabilidade comum do gênero humano, e na França, na China no Brasil, no México, em qualquer parte do mundo, trabalham. Sentem elas que aqueles filhos de guerra tornaram-se praticamente nossos filhos — uma vez que são vítimas da nossa loucura, da nossa ferocidade e da nossa impotência.

Treze milhões — socorramo-los depressa. Porque se ninguém acudir a essas crianças, as que escaparem — e hão de escapar algumas que a força da sobrevivência humana é quase um milagre — as que escaparem, que ferozes ressentidos não hão de ser, que contas não irão exigir, que instrumentos valerão para os futuros Hitlers e os futuros Stalins!

Socorramo-las depressa — senão por amor ao menos por segurança. Já nos basta a bomba atômica. Não lhe centupliquemos a ameaça, colocando-a em poder dos milhões de feras sem lei, criadas na miséria e no ódio, que hão de ser as crianças, os pequenos órfãos de hoje, quando daqui a pouco se tornarem homens, sem assistência, nem proteção da sociedade que tudo lhes roubou.

Marchemos atrás dessas mulheres beneméritas, auxiliemos o seu trabalho, e estaremos fazendo não apenas obra de caridade e amor, mas esforço de defesa, seguro de vida indispensável em favor do futuro da raça humana.

rachel-de-queiroz
x
- +