O prezado leitor já experimentou escrever uma história curta, ou antes, um conto? Eu, que já o tentei várias vezes e com êxito bem medíocre, sei que é uma das realizações mais difíceis deste mundo.

Já se foi o tempo em que conto era matéria de fácil definição. Como o do romance, o conceito de conto se desdobrou em mil formas diversas, desde o conto à Maupassant, que joga com elementos dramáticos de surpresa e sensação, até aos contos de Katherine Mansfield, nos quais nada propriamente acontece, tendo neles os personagens e atmosfera muitíssimo mais importância do que o enredo; nem se pode dizer, aliás, que têm enredo. Há o tipo de conto russo, de ambiente tão denso quanto uma nevasca nas estepes, e há o tipo “Poe” em que se jogam com o macabro e o fantástico, visando efeitos de terror e arrepios. Ou o conto à Brantôme, explorado no Brasil pelo nosso Humberto de Campos, e que se resume a uma anedota cheia de malícia ou francamente licenciosa, contada com mais ou menos elegância e... limpeza. E afora esses, ainda há legiões de contos — o conto moral, a fábula, o apólogo; o conto regional, que pode ser uma narrativa de qualquer tipo à qual se acrescentam tintas de cor local e pitoresco rústico; há o tipo de conto que se poderia chamar de “costumes urbanos”, dos quais o nosso expoente é Antônio de Alcântara Machado; há o conto dito “de amor”, gênero Saturday Evening Post — de que O Cruzeiro sempre nos está dando amostra; e por falar em revistas americanas, há a enorme contribuição das histórias curtas de cowboy e detetive, proporcionadas pela imprensa de língua inglesa aos amadores de todo o mundo.

Não continuarei com esta enumeração, que já está ficando pernóstica; afinal não estamos compondo um tratado de literatura, nem eu sou autoridade no assunto. O meu desejo foi apenas acentuar as dificuldades enormes que há nesse gênero literário, no qual tanta gente boa se afunda. Quem quer fazer conto curto acaba com uma croniqueta mal contada, e quem se estira, descuidoso, quando vê fez uma novela cansativa.

De modo geral quem vai escrever o conto arranja primeiro a anedota para lhe servir de arcabouço à história, e aí mete os seus floreios. Ou um momento climático, culminante, que fica sendo para o conto o que era a chave de ouro para o soneto. Eça de Queiroz, mestre da história curta tanto quanto da história comprida, seguia esse critério. Vejamos, por exemplo, um dos seus contos mais célebres, o caso de amor entre Ulisses e Calipso. Toda a deliciosa história é construída apenas para dar lustre e moldura ao paradoxal conceito do grego sútil acerca de perfeição e imperfeição.

Um pouco de tudo, anedota, clímax, frisson e crônica — há num livro de contos que acabo de ler: o Omelete em Bombaim, de Orígenes Lessa.

Ressalto de saída a linguagem excelente em que é vasado o livro inteiro. Nas histórias curtas, a linguagem há de ser concentrada e específica, exprimindo uma porção de coisas em poucas palavras e ao mesmo tempo sem dar ao leitor a impressão de linguagem telegráfica, ou a impressão de que ele está lendo uma espécie de condensação ou resumo. Há contistas que, depois do ponto final, nos deixam o sentimento de que nos forneceram um digesto da história a ser contada. 

Orígenes Lessa resolveu esse problema da língua com fascinante habilidade. Nem o fraseado solene do gramático, nem o estilo mal alinhavado tão a gosto dos escritores ditos “populistas”. É um meio-termo cheio de equilíbrio e harmonia, em que as exigências de precisão verbal, como as exigências musicais do ouvido, são contempladas com a mesma imparcialidade. Nos diálogos, sobretudo, é que ele brilha: de uma espontaneidade que às vezes parecem notas taquigrafadas de uma conversa casual, e não conceitos previamente meditados pelo autor e postos na boca do personagem com um determinado fim. E todos nós sabemos que infernal artificio é necessário para se dar a um diálogo de títeres essa naturalidade de gente viva...

Há no livro três histórias que reputo três pequenas obras-primas; em nossa literatura só me ocorre compará-las a alguns dos contos de Marques Rebelo ou de Aníbal Machado. São “A aranha”, “Dona Beralda procura a filha” e “Milhar seco”. Esse “Milhar seco”, então, deixou-me um entalo na garganta, com o seu clima de felicidade angustiada, de pressa, de solidão, de desforra, dentro do qual se debate o pobre garoto premiado.

Chamo também a atenção dos leitores para “A boina vermelha”, que é um flagrante delicioso de cidade grande; para o conto-título, “Omelete em Bombaim”, que como caricatura é precioso. E a “Herança”, tão cruel, irônico e enternecido que parece ser obra de colaboração entre a desumanidade do Amigo da Onça e a comovente humanidade do já citado e saudoso Humberto de Campos.

Limito-me a citar estes; mas leiam o livro todo.

rachel-de-queiroz
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