Novamente agita a África nas suas lutas de independência. E é engraçado pensar em como os homens responsáveis (ou irresponsáveis, poder-se-ia dizer num trocadilho fácil) pelo governo daquelas terras negras se embalam na ilusão de que tudo são revoltas passageiras, de que com firmeza, metralhadoras e algumas reformas, os brancos se conseguirão manter como senhores. Talvez porque estejam muito próximos ao centro dos fenômenos, eles percam a perspectiva, ― e só por isso não enxerguem que a insurreição mundial, começada depois da Segunda Grande Guerra, é a insurreição definitiva, e que a luta só terá fim quando os povos de cor do mundo inteiro conseguirem o autodomínio. Superada já está completamente aquela fase de pregação em prol do que eles, brancos, costumam chamar de coexistência. Isto é, a pacífica e até mesmo agradecida aceitação, por parte do negro, do pé do branco no seu pescoço. Eles não entendem que qualquer tentativa de manutenção desse status quo não será mais aceita; que já nem mesmo adiantam concessões, porque agora o grito de todos os povos colonizados é só um, aquele bravo grito do nosso Pedro I: “Independência ou Morte”.

Que adianta, por exemplo, vir demonstrar aos negros que antes da chegada dos brancos não havia por lá nem escolas, nem fábricas, nem hospitais, nem cidades ― isso que se chama civilização? Os africanos absolutamente não se comovem com essas alegações se, em troca de todo o progresso que lhes deram, lhes é recusado o dom primeiro de todos ― o direito à sua dignidade básica de seres humanos.

Esses europeus são curiosos: em progresso técnico e intelectual, chegaram à maior altura a que jamais atingiu a espécie ― e ao mesmo tempo dão provas de uma obtusidade tão cega que nem de um índio selvagem seria lícito esperá-la. Não entra nas suas estúpidas cabeças que são duas coisas incompatíveis proporcionar a um homem as vantagens do progresso técnico e pretender mantê-lo em escravidão? Que na hora em que eles ensinam ao primeiro negro da África a primeira letra do ABC, estão dando o primeiro passo para a liquidação do seu domínio?

E depois há, ainda, vergonhosa hipocrisia: um dos cavalos de batalha alegados é que eles proporcionam aos negros o contato com o cristianismo, a participação na verdade do Evangelho. Sim, batizam um negro em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, e depois se recusam a sentar no mesmo banco de bonde ou na mesma banca de escola, junto com aquele negro “seu irmão em Cristo”, porque a proximidade do homem escuro lhes causa repugnância...

Gritam como profetas, dizendo que estão a ensinar aos negros essa coisa luminosa que é democracia. Mas que classificação merece a companheira inseparável da Democracia dos brancos ― que sentido, que mensagem traz essa outra palavra, de que eles não se apartam ― a Segregação?

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Todas essas discussões estão, entretanto, superadas, e acho que já nem mesmo o mais obturado africânder pensa ainda em inculcar aos negros a aceitação pacífica dos seus conceitos de aristocracia racial por direito divino. A guerra está aberta em termos francos, e hoje a superioridade do branco se mantém apenas pela força. Nem nas missões religiosas se poderá sustentar ideologicamente a ideia da superioridade do europeu, do seu direito à tutela ― aquele famoso “fardo do homem branco” que Kipling celebrava. A disputa está em termos de homens armados e de preparação bélica.

E, Deus louvado, como vão ficando cada dia mais fracas as forças dos senhores velhos! E como os “negros” já se impõem, já gritam alto, e até mesmo causam terror!

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E como se espalha pelo mundo todo essa bendita rebeldia! Pensar que ainda ontem, ainda outro dia, em Xangai, em pleno coração da China, havia um bairro internacional onde a lei chinesa não existia; pensar no que foi a Indonésia sob os holandeses e no que é hoje; pensar na Indochina, na Argélia, em Marrocos, em Gana. Pensar na Índia, no Paquistão! Não faz dez, vinte anos, os cidadãos dessas hoje nações soberanas eram chamados apenas “nativos”, ― e que tesouros de insolência e desprezo se concentravam em tal palavra, dita em boca de europeu! E como nós, filhos dos povos de cor, aprendemos a odiá-la!

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Os entusiastas do progresso científico celebram a segunda metade do século vinte como a era da conquista do espaço sideral. É verdade. Mas ao lado desse triunfo científico vai-se desenrolando um fato histórico de grandeza similar ― a insurreição geral dos povos de cor e o início da igualdade racial e política na face da Terra.

rachel-de-queiroz
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