Já se disse muitas vezes que a nossa Última Página não é local de crítica literária; e muito menos a cronista se imagina capaz do difícil ofício de criticar obras de arte. Por isso não estou aqui a analisar o livro de estreia de minha patrícia Heloneida Studart, este bonito A primeira pedra que acabo de receber impresso, e que já conhecia no original. Quero chamar a atenção do público que lê para o nascimento de uma escritora, que começa com graça e classe, dando-nos um livro ousado e belo — livro de escritor de verdade, não de principiante. É uma história de mocidade, um caso de amor, de sofrimento e de morte, como acontece com todo romance que se respeita. Mas, dentro das velhas e imutáveis fórmulas, a autora soube ser profundamente pessoal, firmemente ela própria, com um jeito original e meio cáustico de dizer as coisas, a par de um delicado sentido poético.
Da nova geração de escritoras, suponho que poucas nos tenham vindo com a força dessa filha das praias do Ceará, essa Heloneida de sobrenome britânico, mas tão realmente nordestina. De estreias recentes, para colocar ao lado de Heloneida Studart, no momento só recordo um nome: o de Adolphina Bonapace que, com o seu romance Isa, também abriu caminho com segurança dentro da literatura nacional.
Falei acima em escritora, em “livro de mulher”. Sim, é bom acabar com esse clima de anedota que cerca a literatura feminina, aqui no Brasil. Acabar com esse costume de sorrir e encolher os ombros quando se fala em escritora ou, pior ainda, essa maneira equívoca de elogiar: quando querem dizer que a gente escreve bem, dizem que escrevemos “como um homem”. Hoje não se precisa escrever como homem, para escrever bem. Já existe realmente uma literatura feminina —sem pejorativo; excelentes escritoras femininas, escrevendo livros de mulher — quero dizer, o conteúdo, o sentido profundo, a própria alma dos livros genuinamente femininos — e dessa força de feminilidade é justamente que tiram a sua grandeza. Cecília Meireles, tão alta poetisa — poeta-mulher, que como mulher escreve. Não é como homem que escreve outra das maiores estrelas das letras nacionais: a romancista e ensaísta Lúcia Miguel Pereira. Duvido até que um homem fosse capaz da finura de interpretação, desse feminino talento de perquirir e captar nuanças, que ela revela no seu “Gonçalves Dias”, ou no seu “Machado de Assis”. São de homem os versos de Henriqueta Lisboa? E o que dizer dessa natureza misteriosa, esquiva mas tão rica, de Clarice Lispector? Mulher, bem mulher, é Dinah Silveira de Queiroz, quer conte histórias de amor, quer faça painéis históricos. E nossa adorável, doce, fina e tão lúcida Maria Julieta? (Por falar nesse nome, que é feito do novo livro, Maria Julieta?) Ou da contista sutil e irônica que é Helena Silveira? Não é como homens que escrevem Maria de Lourdes Teixeira, nem Lúcia Benedetti. Haverá nada mais feminino, neste mundo, do que as divagações poéticas e sentimentais — que (perdoem!) — me comovem e me enchem de maternal vaidade — escritas por minha irmã Maria Luiza? Recentemente apareceu um grande livro, assinado por mulher, livro de mulher, de filha amorosa. Nele se revelou uma escritora de raça, construindo uma biografia que pode ser e é uma louvação ardente, mas nem por isso perde como importância de depoimento: falo de Laurita Pessoa, contando a vida de seu pai, o Presidente Epitácio Pessoa. Como mulher, boa escritora-mulher, escreve Carolina Nabuco. E desafio a quem descubra traço masculino na deliciosa e inimitável prosa de Elsie Lessa. Ah, a lista é excelente e enorme. Lúcia Machado de Almeida, Ruth Guimarães (a admirável Ruth), Maria José Dupré, Francisca Bastos Cordeiro, a minha querida Esther de Viveiros (aguardem a sua biografia de Teixeira Mendes), Eneida, a radiante humana e eternamente jovem Eneida; Lygia Fagundes, Lúcia Fernandes, Terezinha Eboli, Morena Flores que vem lá do Rio Grande do Sul. Ah, são muitas. Muitas que não nomeio, porque a memória é fraca e estou escrevendo longe dos meus livros. E são ótimas.
Literatura feminina, sim senhores. Tirem o chapéu, façam o favor. E vão abrindo alas, que nós queremos passar.