Quanto vale uma vida de criança no Rio de Janeiro? Ou quanto vale uma vida de criança no Brasil, pois que temos de pensar em termos de Brasil e não apenas em termos da capital?

Um conto de réis, cem mil réis, dez cruzeiros?

Vida humana, a gente não realiza direito, mas vida humana tem valor. Um homem é um potencial de riqueza, representa milhares de horas de trabalho, de inteligência, de poder criador, de capacidade industrial, de capacidade artística, de progresso e beleza. A gente só pensa nas criaturas como em qualquer coisa incômoda e frágil, perigosa e cheia de mistério; que enche casas, que exige comida, que quer escola, que adoece e sofre, e tem reivindicações, e sonhos, que é capaz de brigar e pecar e mentir e amar e fazer mal ao próximo.

Por isso, pouca gente hoje em dia deseja filhos; cada filho é um problema acrescentado aos outros problemas da vida já de si tão difícil. E mesmo aqueles mais heróicos, aqueles que desejam crianças e as aceitam, ― esses só amam e só aceitam os próprios filhos, alimentam uma ríspida indiferença, quando não hostilidade, para com os filhos dos outros. Só veem em redor de si concorrentes às oportunidades dos seus filhos, candidatos ao seu pedaço de pão ou de fama, ao seu confortável lugar ao sol.

Mas nem falemos dos filhos por nascer, daqueles que ninguém deseja e que por todos os meios afasta. Falemos dos já nascidos, daqueles que vieram ao mundo apesar de tudo, e sobrevivem só Deus sabe como, graças a um segredo de resistência muito acima da nossa compreensão. Esses é que eu pergunto quanto podem valer. Esses que não têm pai nem mãe que os cuidem, que não têm casa nem escola, que vagabundeiam pela rua pedindo esmola ou roubando, junto com o lixo e os cães vadios da grande cidade, ― atirados por aí como trapos, como se não representassem nada, não significassem nada, não fossem um capital vivo de carne e sangue, uma promessa concreta de riqueza e trabalho.

A gente pensa com piedade e horror nos órfãos de guerra, nos milhões de crianças desvalidas que penam pela Europa, pela China, por toda parte onde houve luta. E nesta guerra particular nossa, nesta guerra obscura em que nos acabamos contra um inimigo invisível, quem é que pensa nos nossos órfãos ? Fazem-se obras de caridade, o governo nomeia funcionários; porém que representa o produto de um baile ou de um garden party, que representam cem leitos num reformatório? Não é com algumas esmolas nem com cadeia e polícia que se salvarão as nossas crianças perdidas.

Estatísticas, queremos estatísticas. Uma das verdades modernas mais positivas é que as estatísticas têm um poder maior de comover e convencer do que as páginas literárias mais dramáticas.

Quantas crianças morrem no Brasil, anualmente, por abandono, por falta de recursos, falta de remédio e mormente de fome?

Quantas crianças abandonadas andam aí pelas cidades, encaminhadas para o vício e para o crime, por que não encontram governo nem particular que lhes dê casa, comida e amparo?

Quantas crianças, semi-assistidas pelos pais paupérrimos, vivem à míngua ― doentes, subnutridas, tuberculosas, vítimas das mil doenças da miséria, fadadas a uma morte prematura, ou a uma idade adulta enferma e inútil?

Quantos dos nossos meninos, em vez de representarem, como o deviam, uma riqueza em crescimento, representam apenas um ônus, um prejuízo e talvez uma ameaça?

Há de haver estatísticas dizendo isso tudo. E se não as há, que as façam. Porque a verdade que sair dessas estatísticas há de ser tão dura, tão negra, que não é possível que uma reação não se produza. Que não se descubra uma saída, um remédio, que não tratemos de recuperar de qualquer maneira, a preço de qualquer sacrifício, esses milhões de filhos do Brasil, destinados à perda antes mesmo de se tornarem homens.

rachel-de-queiroz
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