Mais uma fita italiana que conquista o coração da plateia brasileira, essa despretensiosa e lírica “Viver em paz”. A história da aldeia humilde, agasalhada num pico de morro, sem eletricidade, sem progresso, sem automóveis, que só pedia aos outros o direito de continuar vivendo na sua calma secular e na sua secular pobreza. Que lhe deixassem as crianças nascer, os porcos engordar, a cepa dar uva e a uva dar o vinho que ali mesmo seria consumido. Mas vem a guerra, e primeiro a paralisa de terror, e depois a arrasta consigo e a põe em contato com estrangeiros que a contaminam, pois trazem a guerra consigo, como um micróbio; ― criaturas que a aldeia estranha porque nunca as previu no seu plano de criaturas. E entre essas criaturas estranhas, sobressai o soldado americano que pela primeira vez aparece numa fita de guerra ― o soldado americano negro. (As toneladas de filmes de Hollywood sobre guerra jamais nos mostrara esse herói olvidado ― tentando decerto matá-lo pelo esquecimento, ou encobri-lo como uma vergonha e uma fealdade). E o grande negro de “Viver em paz” nos aparece entretanto como o próprio símbolo da América, na sua força, na sua inocência, na sua alegria primária.

Viver em paz: talvez seja esse o mais belo título que possa hoje ocorrer a quem batiza uma obra de arte. No meio da guerra, do medo e da miséria, viver em paz. Entre os irmãos que se assassinam, junto às prisões que não se fartam, sob as armas e sob os bombardeios ― viver em paz. No meio da discórdia, do desentendimento e da fraude, viver em paz. Outras idades sonharam glória, técnica e riqueza; conforto, poder, ciência. Mas a nossa idade apenas sonha com paz. Dentro dos apartamentos minúsculos da grande cidade, o direito de acordar cedo, tomar sua condução, procurar o seu trabalho e dar conta dele, e ao fim do dia voltar sossegadamente para casa, a fim de comer e repousar: isso é paz. No campo, plantar sua raiz de mandioca, colhê-la, transformá-la em farinha; ver nascer o cordeiro, e depois vê-lo crescer, curá-lo de doenças, tosquiá-lo da sua lã e vender essa lã; possuir alguns palmos de terra a que chame sua, e a ela escravizar-se, ou deixá-la folgar e folgar com a terra, não lhe pedindo mais que o abrigo e a água: e assim viver em paz.

Ser coletor ou juiz ou amanuense num quieto vilarejo de sertão, e a seguir a rotina suave da burocracia rural, ― a calma dormente da vida sem novidades, os papéis escritos à mão, os selos e os carimbos, a sensação de autoridade, a falta de horizontes compensada pelo sossego e pela segurança; a mulher e os filhos na casa de rua, de porta e janela, e o cheiro da carne assada que vem da cozinha quando o patrão chega à tarde, e tira a gravata simbólica da sua hierarquia, e descalça as botinas, e se estira na rede esperando a janta: viver em paz.

Direito de nascer, direito de ser menino, de ficar homem, e amar e gerar filhos, direito de morrer no meio dos filhos e netos, com os cabelos brancos e a pele engelhada, aceitando o fim, porque é chegada realmente a hora do fim; morrer na obscuridade e na pobreza ― mas morrer como viveu: em paz.

Este o sonho do mundo de hoje. A geração que tem nascido e se criado entre duas guerras mundiais, a nada mais aspira ― e é só o que não tem. Dão-lhe tudo: máquinas como nunca houve, progresso jamais sonhado, oportunidades de glória que fariam empalidecer de inveja qualquer herói de Homero; riqueza, poder, mulheres, lutas políticas, ciência, arte, tudo está ao seu alcance, é só estender a mão. Porém os moços não pensam mais em glória nem em heroísmos; o que desejam é fugir do sangue derramado, o que querem é dar um princípio e um fim humanos a suas vidas mutiladas. Não sonham mais com voar nem combater, querem é tomar banho de mar com as namoradas, querem se aquecer ao sol com o coração em repouso; querem gozar da suprema e ingênua alegria de plantar uma semente na terra, e ver o broto nascer, e virar planta e dar fruto. E acompanhando aquele fruto desde a semente à colheita, poder chamá-lo de seu, e orgulhar-se da sua obra de criação.

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Correspondência: O prefeito de Fortaleza, Sr. Acrísio Moreira da Rocha, dirigiu a esta cronista, em resposta a uma das nossas “Última Página” intitulada “Cidade da criança”, uma carta muito bonita e muito animadora, dizendo das suas intenções de homem de governo, dos seus projetos de melhoramentos, e das suas convicções pessoais de criatura humana. São palavras que só honra lhe fazem e que nos enchem de alegria. Junto com o povo de Fortaleza que sufragou o nome do prefeito Acrísio numa eleição que foi quase uma consagração popular, nós cearenses ficamos a esperar que o tempo dê oportunidade ao governador da nossa cidade para cumprir as suas belas promessas e levar avante os seus generosos propósitos.

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