Uma das máximas básicas da boa educação e das boas maneiras decreta que jamais se dirija a palavra a um desconhecido, que se ignore tanto quanto possível a existência dos vizinhos, e se funcione exclusivamente dentro da roda oficialmente reconhecida de parentes e amigos, tal como um peru dentro do seu círculo de giz. A mais sublime prova de distinção que pode dar de si mesmo um imbecil mortal é declarar que reside há dez ou vinte anos no mesmo apartamento e desconhece até mesmo o sobrenome do casal que mora em frente ou o da velhota que mora ao lado. Quantas vezes já temos ouvido alguém a gabar-se de tal feito ― e em geral é mentira, pois a verdade é que somos muito menos ruins do que aparentamos, e a humana curiosidade já fez com que a criatura em questão indagasse direitinho não só do nome e do sobrenome de todos os vizinhos, como da sua história íntima e das suas relações domésticas. Isso porém faz-se em segredo, pois nada é tão maravilhosamente bem quanto mostrar-se uma pessoa aloof, solitária e inacessível.

E não é curioso que uma civilização que se afirma cristã, como a nossa, e cuja base social deveria ser o “amai-vos uns aos outros”, chegue a estimar como virtude excelente essa aberração de egocentrismo?

Vivia o homem primitivo sozinho na sua caverna até que arranjou companheira e que lhe nasceram os filhos. Crescida a família, com pouco já está ele incorporado a uma aldeia. Da aldeia passa à vila, da vila à pequena cidade, da pequena cidade à cidade grande e desta à metrópole moderna de mais de um milhão de habitantes. Uma vez porém chegado à metrópole, depois de atingir esse delírio de gregarismo representado por Londres ou Nova Iorque, então o homem se assusta e recua e passa a temer e aparentemente a odiar o seu irmão e igual, com o qual se acotovela de segundo em segundo, na rua, no bonde, no cinema e no trabalho; e o seu maior cuidado consiste em conseguir viver dentro de um agrupamento de vários milhões de almas, mas tão fechado, tão silencioso, tão isolado no seu apartamento quanto antes o estivera na caverna primitiva (com a qual, incontestavelmente o dito apartamento tem vários pontos de semelhança, pelo menos no tamanho e na incomodidade).

E por que será que o homem civilizado aceita cegamente esse estúpido preconceito, tão divorciado do seu instinto natural e tão contrário aos preceitos da sua moral religiosa? Decerto pelo mesmo motivo que o faz envergar para um baile de verão, com 40º de calor à noite, um casaco de lã preta e um colarinho engomado. Ou construir nesta latitude uma casa de estilo escandinavo, com telhado de cortar neve e paredes inteiras de vidro. Por instinto de imitação, pelo desejo de conformar-se ao que se consideram os padrões do bom gosto e da suprema civilização e — justiça se faça —levado por seu obscuro amor ao belo, ao excelente e ao perfeito, que é uma das molas mais atuantes do procedimento humano e que não deixa de ser louvável na intenção, mesmo quando não resulta louvável na prática.

As classes pobres, que não obedecem a padrões tão severos de procedimento social, já vivem de maneira muito mais humana e cristã. Entre gente pobre o próximo é realmente o nosso próximo, não só idealmente, como material e geograficamente, e tanto o é para o mal, como para o bem. Quer dizer que pobres se ajudam ou se guerreiam entre si, como se pertencessem todos a uma única família, e a verdade é que a promiscuidade da vida quase em comum os transforma praticamente numa família única. De uma casa para outra contam-se histórias, empresta-se um ovo ou um cobertor, acode-se a um doente, vigiam-se intimidades. Mal vai chegando a mudança de um vizinho novo, já o morador antigo está ajudando a descarregar os trastes da carroça, e o pó do primeiro café que se faz em casa do recém-chegado em rigor é emprestado pela vizinha prestimosa.

Veja-se um trem: ande-se no carro de primeira classe e depois no de segunda. No de primeira vai aquela turma enjaulada ali dentro por doze, quinze horas, cada um metido consigo, boca fechada, prodigiosamente chateado, consultando o relógio de minuto em minuto, folheando o livro ou o jornal, fazendo o máximo esforço possível (e a intensidade desse esforço é proporcional ao seu grau de educação) para não roçar sequer com a manga do paletó, durante a viagem toda, no braço do seu vizinho de banco.

Vá-se agora ao carro de segunda: primeiro nele sempre viajam mais crianças — onde há pobres há crianças em abundância, não se sabe bem por que. Logo as crianças confraternizam, e antes da hora do almoço as senhoras já estão trocando umas com as outras confidências, sanduíches, coxas de galinha, já explicaram o motivo da viagem, porque se deram mal no Braz ou em Nilópolis, que a mãe velha está doente, que não sabem como vão se apertar na casa da irmã enquanto arranjam um cômodo, — e logo com aquele gênio que o marido tem tão difícil de acomodar, imagine. Mas vida de pobre é assim mesmo não é? E ambas fraternalmente concordam em que vida de pobre é assim mesmo.

De onde se conclui que os ricos e bem-educados cada vez se afastam mais de Deus e dos seus mandamentos, enquanto os pobres, em razão mesmo da sua pobreza, são irresistivelmente arrastados ao bom cumprimento da doutrina cristã. E aí temos mais uma virtude da pobreza, afora todas as outras antes preconizadas por sábios e doutores.

Ainda outro dia um grande escritor e grande católico declarou em entrevista de jornal que não gosta dos vizinhos. Terá esse homem pensado em quão aberrantemente anticristão se mostrou, e no escândalo que deu com tal palavra? Decerto não. Pois é claro que ele jamais se deteve a verificar que o nosso vizinho é exatamente o nosso próximo, aquele a quem, segundo a lei, “devemos amar como a nós mesmos”.

rachel-de-queiroz
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