Quando saírem a público estas linhas, caríssimos, estaremos bem em cima das eleições e só de eleições se cuidará. E se eu me puser com desconversa, discutindo outros assuntos, nem que sejam o sol e a lua ou a estrela da manhã, vocês atirarão fora a revista, naturalmente: quando se chega à última página e o que vem nela não interessa, nada mais fica para ler. Só se for o anúncio da capa de trás.

Falemos, portanto, acerca de eleições. Assunto difícil, onde teremos de nos equilibrar como dançarinos de arame, porque os donos da revista não me querem ver metida em política. Não nos zanguemos com eles, pois talvez seja por amizade comigo essa restrição. Acham decerto que seria malvadeza permitir que uma senhora desprotegida e ingênua como a pobre de mim se atirasse inocentemente entre lobos e leões.

Fiquemos “au dessus de la mêlée”, o que se pode traduzir por “serrando de cima”, e discutamos as eleições com elevação e filosofia.

Os passados 15 anos de escura noite política desabituaram completamente os brasileiros da prática do direito do voto, ou da obrigação do voto, pois como dizem os professores, todo direito tem uma obrigação que lhe é correspondente. Gravemos, portanto, isto, logo de saída: votar, acima de ser um direito e um privilégio é, principalmente, uma obrigação.

Não sei se vocês têm meditado como devem no funcionamento do complexo maquinismo político que se chama governo democrático, ou governo do povo. Em política a gente se desabitua de tomar as palavras no seu sentido imediato, e vai aceitando levianamente as interpretações mais fantasistas. No entanto, talvez não exista expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser tomada no seu sentido mais literal do que esta: governo do povo. Porque, numa democracia, o ato de votar representa precisamente o ato de “fazer o governo”.

Pelo voto não se serve um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe de maneira definitiva e irrecorrível o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo de tempo.

Escolhem-se pelo voto aqueles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas — e quão profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar tudo e tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete palmos de terra da derradeira moradia.

Bem o vimos, no tempo em que a função legislativa andava nas mãos usurpadoras e sem escrúpulos daquele homem de São Borja, como éramos privados dos direitos mais elementares e nos impediam de falar, de pensar, de escrever, praticamente nos impediam de ser homens. Como nos espancavam e prendiam, e exilavam, e roubavam, e oprimiam por todos os modos — só por quê? Porque a função legislativa caíra em mãos indignas.

Escolhemos igualmente pelo voto aqueles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aqueles que vão estipular a quantidade desses impostos. Vejam como é grave a escolha desses cobradores. Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gota de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bolso.

E por falar em dinheiro, pelo voto escolhem-se não só aqueles que vão receber, guardar e gerir a fazenda pública, como se escolhem também aqueles que vão fabricar o dinheiro. Esta é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos. Pois se a função emissora cai em mãos desonestas como sucedeu tanto tempo entre nós (temos que novamente citar a ditadura porque ela é uma fonte inesgotável de maus exemplos) é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários. Eles desandam a emitir sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica tanto que vira papel sujo e o que antes valia mil hoje não vale mais zero.

Não preciso explicar muito este capítulo, que nós ainda nadamos em plena inflação e sabemos à custa de nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder.

Escolhem-se nas eleições aqueles que têm o direito de nomear e demitir funcionários e presidir a existência de todo o organismo burocrático. E, circunstância mais grave e digna de interesse: dá-se aos representantes do povo que exercem o poder executivo o comando de todas as forças armadas: o exército, a marinha, a aviação e as polícias — sejam militares ou civis.

E assim, amigos, quando vocês forem levianamente levar um voto para o sr. Fulaninho que arranjou distribuição de banha ou carne seca, ou para o sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador do estado, coitadinho, ou para Beltrano que foi tão amável, parou o automóvel na rua, lhe deu carona e depois solicitou seu sufrágio, — lembrem-se que não vão proporcionar a esses sujeitos um simples emprego bem remunerado. Vão lhes entregar um poder enorme e temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes proporcionar soldados para eles comandarem — e soldados são homens cuja principal virtude é obedecer às ordens dos chefes que lhes deu o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes legítimos, damos-lhes procuração para agirem em nossos interesses como se nós próprios fossem. Entregamos a esses homens tanques, metralhadoras, canhões, fuzis, granadas, aviões, submarinos, navios de guerra — e a flor da nossa mocidade, a eles presa por um juramento de fidelidade. E tudo isso pode se virar contra nós e nos destruir, como o monstro Frankenstein se virou contra o seu amo e criador.

Votem, irmãos, votem. Mas, pensem bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e quanto! Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais paciência e desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva. Porque afinal a mulher quando é ruim, dá-se uma surra, devolve-se ao pai, pede-se desquite — e o governo, quando é ruim, ele é que nos dá a surra, ele que nos põe na rua, tira o último pedaço de pão da boca dos nossos filhos e nos faz apodrecer na cadeia. E quando a gente não se conforma, nos intitula de revoltosos e dá cabo de nós a ferro e a fogo.

E agora um conselho final, que pode parecer um mau conselho, mas no fundo é cheio de sabedoria. Meu amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar este ou aquele candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua timidez. LEMBRE-SE DE QUE O VOTO É SECRETO.

Se o obrigam a prometer, prometa; se tem medo de recusar uma chapa, aceite-a: O crime não é seu, mas de quem tenta lhe violar a sua livre escolha. Se do lado de fora você depende e tem medo, não se esqueça de que DENTRO DA CABINE INDEVASSÁVEL VOCÊ É UM HOMEM LIVRE. Falte com a palavra dada à força e escute apenas a sua consciência. Palavras, o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até o inferno.

rachel-de-queiroz
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