Triste de quem neste mundo 
Nasceu para ser mulher. 
Se é bonita tem seus erros, 
Se é feia ninguém a quer.

(Popular)

Bem seria se os males da feminina condição se resumissem a estes que alega a quadrinha. Pois as feias de hoje em dia bem se arremedeiam e aos erros das bonitas não se dá mais grande importância.

Pobres de nós, mulheres, e mais pobre de nós ainda neste mundo moderno, em que até para a guerra nos mandam. Nós sempre fizemos os homens, mas agora também nós temos que os destruir. O arquiteto que nos fabricou pouco cuidado teve em dividir com equidade o ônus da continuação da espécie; e assim, neste tremendo trabalho da geração, a parte de esforço do homem é como a centelha que gasta o isqueiro para acender a fogueira — enquanto a nossa contribuição é de toda a lenha de que a fogueira se nutre. Sem a faísca não há fogo, é claro — mas que dirá sem lenha? E afinal que é a fogueira: a lenha ou a faísca?

Nunca fui feminista; jamais me pude convencer de que seja uma prova de adiantamento social e não de atraso, uma mulher ser motorneiro de bonde. Biológica e socialmente falando, considero a profissão de motorneiro inadequada para mulheres como inadequadas o são a maioria das profissões masculinas. E tanto é verdadeira esta afirmação, que em todos os países nos quais a mulher consegue direito de paridade absoluta com os homens (como por exemplo na União Soviética), salvo em tempo de guerra, em casos de emergência nacional — que se vê são os homens dando conta dos seus ofícios tradicionais e as mulheres retornando pacificamente aos seus, depois das tentativas nascidas do primeiro entusiasmo.

Sei que piso zum terreno todo ladrilhado de lugares comuns, pois nada há pró ou contra, neste tema, que não tenha sido abundantemente dito e escrito. Mas este, como o amor, como a morte, como o trabalho, como todos os assuntos eternos, a gente os tem que discutir pondo de parte qualquer repugnância de incidir em lugares comuns.

Aliás, no meu conceito, o problema não tem solução. O homem tem os seus ócios garantidos pela natureza e nós somos escravas da carne. Livre dos compromissos que nos amarram, pode ele se entregar à vontade à vida de espírito, à vida de ação, às aventuras geográficas ou intelectuais, enquanto nós... meu Deus, para que entrar nos detalhes da nossa miséria, que todo o mundo conhece? O fato é que a questão não é propriamente social, é uma questão de função fisiológica.

Por isso desenvolveu o homem a sua capacidade de se entregar a especulações que a nós jamais interessaram. Por isso podem os homens ser idealistas, enquanto que nós, por culpa das nossas entranhas soberanas, da nossa natureza, muito mais presa ao animal que a deles — somos entes positivos e realistas. Jamais houve mulheres grandes filósofos, e jamais as haverá, porque a metafísica é um campo intelectual que a mulher pode compreender mediante um esforço mental heroico, mas no qual nunca se há de sentir à vontade. A mulher não quer saber de especulações, quer as soluções já prontas — e quanto mais simplistas e imediatas, melhor. Por isso se entregam as mulheres com tanto abandono às religiões e às pregações políticas revolucionárias. O que a mulher essencialmente deseja é segurança, alimento e conforto, a fim de que possa conceber, dar à luz e criar a prole satisfatoriamente, e esse problema tanto pertence à galinha choca como à rainha da Inglaterra. O que nos interessa é a solução concreta — e a esperança do céu é a esperança de uma solução concreta, como o estado socialista será outra solução concreta. Graças a esse mesmo motivo foi que o fascismo conseguiu arregimentar tantas legionárias fanáticas, porque o fascismo era uma promessa de abastança, de estabilidade, de predomínio. Pouco importava no fundo a questão de ética, a legitimidade da teoria política, pois a verdade é que a mulher é essencialmente um animal antiético. Nem chega mesmo a compreender a necessidade moral da ética em si. Para as necessidades morais femininas, a polícia neste mundo e o inferno no outro são mais que suficientes.

Por mais inteligente que seja uma mulher, por mais que se enfronhe no campo mental masculino, sempre estará nele como uma estranha: e a dramática interrogação do SER OU NÃO SER que para o homem representa a questão suprema, para ela não significa mais do que um jogo, que ela poderá jogar habilmente, se bem ensinada, mas que nunca lhe há de absorver a vida. E ela se sentirá sempre consciente do convencionalismo daquele jogo, da sua frivolidade, da sua inutilidade. A angústia metafísica do homem sempre nos pareceu pueril e sempre a buscamos aplacar não nos contagiando dela e procurando também a solução — mas como aplacamos os terrores noturnos dos nossos filhos, a poder de carinho, de ternura física. Que para nós o seio da mãe ou da amante há de ser eternamente o remédio universal e definitivo.

Acho que o nosso grande mal — e aliás irremediável é vivermos num mundo criado pelos homens, mantido perpetuamente dentro do padrão masculino, que jamais corresponderá aos nossos padrões. Para satisfazermos a esse modelo alheio temos que recalcar eternamente os nossos instintos físicos e as nossas necessidades morais, temos que nos adaptar a algo que nunca representou o nosso ideal feminino; em vez da matriarca autoritária, gorda, comodista, senhora dos homens e dos filhos, que seríamos nós todas se nos realizássemos de acordo com nossos gostos e tendências, temos que nos transformar num ser de delicadeza e renúncia, de idealismo e submissão. Desde adolescentes exigimos de nós próprias essa contrafação e se nos habituamos à aparência que de nós reclamam, o fato é que jamais a atingimos intimamente. Vivemos simulando, mas só Deus sabe o que isso nos custa.

Vejam este ofício de escrever, por exemplo. Nada mais difícil do que escrever, para uma mulher, se ela quer fugir ao mel rosado da chamada “literatura feminina”. Tenta ser natural, mas tem que procurar um natural forçado, porque o natural de verdade lhe é proibido. Mesmo que não tenha preconceitos, grande parte dos assuntos lhe são proibidos, senão por outra coisa, pelo menos pelo que se chama “bom gosto”. Uma mulher não pode ser engraçada (há nada mais doloroso do que as palhaçadas femininas com que o cinema americano nos envergonha?). Um homem pode escrever de seus amores — é assunto que até lhe dá lustro; mas que pensarieis, amigos, se uma mulher se pusesse a contar no jornal os seus casos de coração, aquele que lhe deu o fora, aquele outro a quem ela enganou, — e usasse, enfim, a singela franqueza de que pode usar à vontade qualquer memorialista masculino? Se ela diz as verdades brutais da vida é uma virago, se não as diz não passa de uma boneca falante. E se, num prodígio de equilíbrio, consegue manter-se a igual distância de ambos esses abismos, e nada faz que peque por demais ou por de menos, o melhor que consegue é este elogio singular: “ESTA MULHER ESCREVE TÃO BEM QUE ATÉ PARECE UM HOMEM”...

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