Quando começou a aparecer em suplementos e livros a chamada “geração de 45” — a primeira a se afirmar e a fazer falar de si depois da geração de 30 — nós, que éramos precisamente esses “de 30”, sentimos bastante funda a melancolia de quem vai deixando de ser jovem. Parecia que nós e aqueles moços éramos habitantes de dois mundos diferentes; em comum, tínhamos a língua, não a linguagem. E os mais suscetíveis, ou os mais vulneráveis, dentre nós, mostraram então, contra os de 45, a reação natural a todo aquele que se sente ameaçado numa posição conquistada duramente.
Felizmente, porém, nunca participei dessa hostilidade; posso ir para o inferno por culpa de quase todos os sete pecados mortais, menos por falta de humildade. E assim, na simplicidade do meu coração, na compreensão honesta das nossas, e mormente das minhas limitações literárias, recebi com grande esperança e bastante respeito essa nova fornada de prosadores e poetas que nos apareciam depois da guerra — filhos da guerra, marcados pelas influências da guerra.
A acusação maior que lhes fariam os nossos era o hermetismo, a esterilidade, o excesso de intelectualismo, o medo da realidade, etc. Na verdade, para alguns dos “de 30”, o maior defeito dos moços era serem diferentes de nós. Cada geração se considera o modelo completo e acabado da evolução no seu gênero; e todo indivíduo que ameace a sua performance não lhe aparecerá, portanto, como um sinal de progresso, mas de decadência...
Basta citar, entretanto, alguns poucos nomes da geração de 45, para se ver que a razão estava com aqueles que a saudavam com aplausos. Uma geração que nos deu a admirável Clarisse Lispector, os admiráveis Lêdo Ivo e Geir de Campos; e os mineiros — Mendes Campos, Sabino, Otto Lara, Pelegrini; os cearenses — Aluízio Medeiros e o seu grupo; e a flor deles todos, que é como uma súmula das riquezas e da força daquela geração: Maria Julieta. Escolhi poucos, quase ao acaso. Mas chegam esses nomes para mostrar que a geração de 45 marcou de forma excepcional a literatura do Brasil. Se não fez mais arruído foi porque nunca trabalhou em conjunto, num impulso homogêneo; era mais um bando de individualistas, ciumentamente isolados uns dos outros, ou encerrados, quando muito, em pequenos grupos de dois e três. Sem o gregarismo da nossa manada de “búfalos do Nordeste” — como nos chama mestre Oswald...
E eis que surge, depois dessa, a geração novíssima, e mais uma surpresa para nós: esses infantes voltam a trilhar os velhos caminhos, são tão diferentes dos de 45 quanto estes o eram de nós próprios. Se os novíssimos se parecem com alguém, parecem-se conosco, como nesses casos de família em que os filhos saltam os pais e vão puxar ao avô.
Faço estas constatações ao ler o livro de contos recém-publicado pelo escritor Renard Perez, um dos novíssimos e, entre os novíssimos, um dos melhores. (Os Sinos — Renard Perez, edição Jornal de Letras, Rio, 1954.)
Nada mais, aqui, daquela angústia kafkaniana dos outros. Nem os mundos fechados, que se procuram traduzir numa sintaxe mais ou menos obscura, em jogos inéditos de palavras. Aqui, o trabalho literário decorre posso dizer que quase “com normalidade” — se há “normalidade” em obra de arte. Tudo aqui é mais objetivo, mais imediato. Creio que a palavra mais indicada para qualificar essa maneira seja mesmo o universal neorrealismo. Um neorrealismo moderadamente impressionista, se o ouso dizer. Nos temas, na linguagem, na singeleza e precisão da narrativa, no cotidiano dos caracteres. Sem, contudo, se baratear no pitoresco e no documentário, que foram as duas armadilhas mais perigosas postas no caminho dos escritores da minha geração. Acrescente-se a isso um grande senso poético, uma equilibrada delicadeza de nuanças, e teremos uma imagem desse livro pequeno, que já não é a amostra, mas a primeira batalha vencida por um escritor autêntico.