Nos meus tempos de menina, aquele trecho de praia, em Fortaleza, só tinha uma ou outra casa de veraneio, palhoças de pescadores e, de noite, as esquadrilhas de jangadas dormindo na areia, ao luar.

 

Depois abriram ruas, plantaram calçamento e começaram a levantar bangalôs; logo um ou dois ricaços farejaram o bairro futuroso, o dinheiro do inquilino e correram a construir umas vilas com casinholas de aluguel ― a princípio destinadas só a quem queria “passar tempo na praia” e logo tornadas residências permanentes, com o crescimento da cidade.

 

Aos poucos, a Fortaleza antiquada, que até então para o mar só dava os seus despejos e os seus fundos de quintal, resolveu ter um bairro balneário, e foi se interessando pela velha praia do Peixe. Mas interesse de burguês senhorio de casas é antes para o mal que para o bem. Burguês é como galinha: onde anda arranca o verde e deixa o sujo. Assim eles: derrubaram o coqueiral, fizeram monturo nas dunas tão brancas, destruíram os cajueiros que brotavam miraculosamente na areia salgada. Foram amontoando pardieiros, sobradinhos, vilinhas, casas de pensão e bodegas, abrindo ruelas e becos, alugando, alugando, ganhando dinheiro. Passados tempos o lugar antigo, tão lindo antes, virou um horror. As casas se apertavam, se acumulavam, se entortavam, desiguais e pretensiosas, brigando por espaço como se o mundo não fosse tão grande, e a alva faixa de areia não se estendesse no Atlântico até quase o Polo Sul.

 

E assim mesmo achavam que o local estava chique, e resolveram lhe mudar o nome pois isso de praia do Peixe, além de vulgar, era feio. Feio era o nome, imaginem.

 

Abriram um concurso; teve quem propusesse Riviera, Palm-Beach e Biarritz. Mas por sorte ganhou o concurso minha querida amiga Dona Adília de Morais (que agora, se tem mesmo anjo no céu, foi morar com eles); lembrara-se da índia cujo nome é sozinho um poema e com ele batizou a praia. Assim o bairro novo Praia de Iracema se chamou; mas muito mal merecido. Tanto a índia como a madrinha estavam muito acima daquela feiura.

 

Contudo, por sugestão do nome, ou simples força de crescimento, a Praia de Iracema depressa foi melhorando. Cresceu para os lados de Mucuripe, ganhou uma avenida, espaçaram-se as construções; e embora as casas dos ricos se fossem postar atrevidamente no meio da areia que deveria ser só dos banhistas, e atravancavam a vista como se o mar fosse deles ― sempre era muito melhor do que aquela promiscuidade de cabeça de turco que reinava na parte primitiva.

 

Nessa parte primitiva, contemporâneo dos pioneiros, estava o restaurante do Ramon. Era célebre por suas peixadas, feitas com cavala perna-de-moça. E mais célebre pela sopa de cabeça de peixe, que se tornou uma instituição da cidade. Ocupava o restaurante uma antiga casa de veranista, bem a cavaleiro do mar, trepada numa muralha de pedra que as ondas na maré cheia lambiam como um arrecife. As atrizes famosas, os poetas, os pianistas e os próceres políticos de passagem na cidade iam infalivelmente provar da sopa do Ramon. Quando a gente queria comemorar um aniversário, celebrar um encontro entre amigos, onde iria? Jamais além do Ramon. Debalde faziam restaurantes novos no Passeio Público, boates em Pirapora, bares no último andar no Excelsior. Só o que servia era a varanda singela do Ramon, onde se a gente quisesse podia até cuspir os caroços de azeitonas nas ondas do mar salgado.

 

Veio agora telegrama nos jornais contando que a Praia de Iracema, qual Atlântida cearense, desaparece ante a fúria das águas. Casas de rico e casas de pobre, feias e bonitas sem distinção, calçamento e trilhos de bonde, tudo o mar devora; até parece que enganou de margem e pensa que está em terra de flamengo. Não quis saber de amigos, não pensou em compadres nem comadres ― acabou levando também o restaurante do Ramon com suas mesinhas na varanda, sua muralha de pedra e a celebérrima cozinha onde se apurava, misteriosa, a sopa de cabeça de peixe.

 

Ramon poderia ter aberto outro restaurante, ter alugado o roof de um arranha-céu (que em Fortaleza já tem disso) e aproveitar sem dó a publicidade que lhe proporcionara o desastre. Mas Ramon era um artista, um homem de coração. Curvou-se ante os deuses, como um herói de Homero; tal como a sua varanda de pedra, não resistiu ao embate e matou-se.

 

Outra praia há de nascer e outras casas se hão de erguer na nova praia; novas morenas substituirão na areia as antigas ― novas morenas e novas ruas, novos prédios, nova vida.

 

Esquecido será Ramon, que morreu por culpa do mar, como um marinheiro que se afoga junto com o seu navio.

 

Mas antes que isso aconteça, à cidade que o amava e que ele amava, peço uma saudade para Ramon.

rachel-de-queiroz
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