Gostaria de poder me explicar direito, mas há casos em que é difícil a gente se manifestar. Tenho pensado neste assunto muitas vezes, tento comentá-lo e não consigo.
Vamos ver se dá certo uma comparação:
O homenageado está sentado à mesa do banquete: o charuto na boca, o sorriso na face, o ouvido atento ao discurso de louvor. Ao seu lado os grandes do mundo, e o mundo inteiro, grande, e pequenos, aos seus pés. Que coisa doce é ser célebre, que experiência agradável é a fama, que sensação de plenitude deve dar a gente se sentir o maior: bóxer, bailarino, tenor, craque de futebol, herói aéreo, pintor laureado.
Pois é a respeito disso, justamente, que tenho dúvidas. Vendo o indivíduo assim celebrado, a ideia que logo me ocorre é que ele não recebe nada daquilo grátis. Paga um preço alto, altíssimo: o esforço permanente de se manter em forma, a vigilância em não decair, e, acima de tudo, a responsabilidade no momento dramático e solitário em que deve executar a performance que é a fonte da sua fama, que o coloca acima das demais criaturas. O grande tenor lírico, por exemplo: mora nos grandes hotéis, anda em carro de luxo. Recebe a adulação da turba e das elites, é um rei, vive em Pasárgada. Mas na hora em que enverga o travesti e pisa o palco, e dá começo à ária dificílima que justifica a sua celebridade – nessa hora sua grandeza evaporou-se. Chegou o momento que certo autor americano chama-o de deliver the goods – de entregar a mercadoria. Aí de nada vale a sua condição excepcional, antes o atrasa. Aí ele tem que trabalhar com o suor do rosto, com o ar dos pulmões, com a mísera garganta que talvez esteja entravada de emoção ou de receio, com os músculos tensos, sozinho, sozinho, porque nada o ajuda. Antes a expectativa ciumenta do seu público o espreita como um olho de inimigo.
O ás de aviação, a gente o vê no momento em que desembarca e é recebido com banda de música. Mas a hora de tensão e terror lá em cima, quando vísceras se encolhem, no protesto da carne contra a velocidade desumana, vísceras que não diferem em nada das tripas de um covarde? E o fôlego que falta sofrendo a altitude inimiga da vida, e a luta contra a máquina, o cheiro da máquina, a brutalidade da máquina, falibilidade da máquina? Poderá haver maior miséria, maior desamparo?
Os exemplos podem se repetir até o infinito. É o pianista ídolo do público, isolado como um náufrago diante do mar negro que é plateia, enfrentando o piano polido, apelando desesperadamente para os seus dedos hábeis, treinados, mas de carne e osso como os dedos de todo mundo, apelando para a memória que também corre o risco de falhar, sabendo que não pode esquecer uma nota, que tem de dar tudo, e que está ali sozinho, sozinho, como o estava na hora em que nasceu, como estará na hora em que morrer.
É o craque de futebol que enfrenta o gramado, a capacidade sempre temível do adversário, as incertezas do jogo. É o trapezista na hora do duplo salto-mortal, a contemplar lá de cima o chão duro, ou a morte –, e a separá-los não há senão a sua destreza e a sua coragem. E o toureiro, que enfrenta a fera, o grande ator vivendo o drama imortal.
Até o pobre diabo do escritor, com a folha de papel em branco diante de si; sabem lá o que é o desespero de não poder inventar, a agonia de se sentir fracassar, a boca que não diz nada, a mente vazia, sem riqueza de ideia, sem desenho de forma. poço seco onde só há areia e pedra? E assim mesmo o relógio correndo, a obrigação de ter inteligência e ter espírito, a luta desesperada por um fiapo de frase, que se desfaz de pensamento, que aborta antes de se exprimir em palavra?
Sim, passado o momento decisivo da criação, ou da ação, há o aplauso, o dinheiro, o renome. Mas antes – tem-se que pagar o preço disso tudo – em dor, em suor, em medo. Desculpem a aproximação, pode ser brutal mas é verdade: como uma cortesã, paga-se com o corpo. Por mais que se doure o cenário, por mais que se idealize o ofício e o oficiante – tem-se o luxo, o amor do povo, o retrato nas revistas, as palmas, a inveja. Mas quando chega a hora de "entregar a mercadoria", com o velho corpo é que se paga – quando também a alma não vai de roldão, misturada com o suor, o tremor da perna, o medo e a fadiga.