Senhor prefeito —
Era ao bispo que eu devia me queixar — é o que todos me dizem. Mas acho que não fica bem, pelo menos neste número de Comício, em que o Fernando Sabino, além de me intrigar com a memória de Gide, dizendo que nunca o li, e dar a entender que só tenho alguma cultura de uísque (bebida que às vezes sou obrigado a tomar para poder desfrutar, nos botequins desta praça, da companhia divertida dele e de outros chichisbéus e valdevinos) ainda pretende me deixar mal com a Santa Madre Igreja. Até parece que eu sou contra o Index — que, pelo contrário, considero uma brilhante prova da evolução do espírito liberal do Santo Ofício, que antes não se limitava a escrever o nome de um autor e seus livros numa lista negra, mas queimava caridosamente os livros — e, às vezes, o autor.
O senhor prefeito, que já correu perigo de ser excomungado, compreenderá minha reserva, e meu temor. Deixemos o bispo em paz, e vamos ao caso que, nem por ser meu particular, deixa de ser de todo o povo desta cidade que o senhor governa.
Eu quero morar, senhor prefeito; e, homem de sorte, já tenho onde. Senti-me feliz quando arranjei esse lugar onde; mas já se escoaram meses, e eu continuo a não morar, continuo a esticar o meu velho corpo cansado em camas emprestadas de alheios quartos, de lares amigos e caridosos.
Estou longe de meus livros, de meus quadros, às vezes até de minhas cuecas, meus pobres trens espalhados um pouco por toda parte na Zona Sul desta capital, mendigando aqui um almoço, além um banho, mais além uma cadeira e mesa para escrever, ou um rádio para ouvir o jogo de futebol. Ao trotar por essas nossas ruas, senhor prefeito, com minha escova de dentes no bolso e uma pequena maleta na mão, eu me sinto um flagelado sem pau-de-arara, e no meu peito ferve um ódio de morte ao imperialismo.
Quando eu falo de imperialismo estou falando da Light e todos esses seus pseudônimos que monopolizam o gás, o telefone, a luz. Homem de idade provecta e saúde melindrosa, não posso, no inverno, tomar banhos frios; e se não tenho gás para acender o meu fogão, como vou cozinhar meu triste almoço? E se um diretor de jornal, sentinela da democracia, não tem telefone, como pode ele vigilar a república, com sua casa isolada do jornal e do mundo?
Pois chorando, implorando, ameaçando, dizendo preces e palavrões, já consegui, senhor prefeito, que ligassem o gás ao meu edifício. E agora sou, na Companhia que explora esse mau cheiroso ventinho que pega fogo, objeto de mofa e escárnio de todo o mundo. Eles me dizem: “choraste, Braga? pois lá tens o gás; agora é preciso que vá um fiscal da prefeitura e diga que o podemos ligar ao teu apartamento”.
Que vergonha, senhor prefeito! Eu a combater o polvo imperialista, e o polvo a me apontar, com seus mil braços, a desídia de minha pátria, e a me dizer, com sua boca nojenta: “vamos, agora não se trata de “tubarões” estrangeiros: é a tua prefeitura, da tua cidade, é a gente de tua terra e de teu sangue que proíbe o teu feijão, oh miserável!”.
Não é pelo gás, senhor prefeito, é pelo nome do Brasil! Mande lá um fiscal, um fiscal decente, que não queira “morder”, como os outros, o português da portaria; que diga que tudo está em ordem e que me permita voltar-me outra vez para esses sacripantas estrangeiros e dizer: “vamos, polvinhos, filhos do polvo, o meu gás!”.
Vou lhe mandar esta crônica com meu (futuro) endereço e um pedido de telefone e de clemência. E entrementes sou, senhor prefeito, ainda que sem pão, sem fé, sem lar, sempre seu admirador e criado sem valia.