Creio que o agente de seguros falou tanto que eu mergulhei no sono; nesse caso foi no sono que nosso desagradável diálogo continuou. Ele era um homem alto e forte, e estava, provavelmente, armado, de outro modo não teria coragem de vir à minha casa especular sobre a minha morte, e me dizer as últimas. Reconheço que tinha um ar gentil e procurava apresentar as coisas da maneira mais meiga possível: “no caso do senhor faltar…”.

一 Faltar como, cavalheiro?

一 “Quero dizer: no caso de antes de findo esse prazo, o senhor vir a faltar…”.

一 Sei. O senhor quer dizer que eu vou morrer neste prazo, não é? 

Seus olhos brilharam:

一 “Não, absolutamente! Estou lhe mostrando as modalidades... (disse várias coisas inconsequentes sobre prêmios e prazos)... veja bem que o senhor desembolsa 18 contos por ano ao passo que a Companhia desembolsará 48…”.

Ele dizia aquilo com um ar de intolerável astúcia, mas resolvi desmascará-lo, fingindo-me mais pateta do que sou:

一 O senhor diz que eu darei 18 contos a Companhia e ela dará 48 ao meu filho, todo ano. Não acredito muito, mas é bom negócio. Saímos ganhando cerca de 30 contos por ano, mais ou menos, não é? Não sou muito forte em matemática. Mas quanto tenho de lhe dar de comissão para o senhor me arranjar esse negócio?

一 “Oh, o senhor não tem de me dar nada. O senhor não compreendeu. O que eu quero dizer é que seu menino terá uma renda mensal caso o senhor falte; que seu apartamento, graças a este outro plano, estará imediatamente pago…”.

一 Muito vantajoso! Devo então morrer imediatamente, é isso que o senhor deseja insinuar, não? Mas como é o plano? A própria Companhia providencia tudo? Qual é o sistema que os senhores aplicam? A cadeira elétrica, a forca? Caso seja possível um fuzilamento, eu preferia, a não ser que…”

Ele ergueu-se com um ar formal: 

一 “Muito pelo contrário, senhor. A Companhia visa precisamente lhe dar segurança, garantir o futuro dos seus. Esse seguro educacional cobre à sua falta em qualquer hipótese”. 

Aquela expressão “a minha falta” não me agradava muito; mas “qualquer hipótese” me fascinava. Revi o tombadilho noturno, as águas correndo lá embaixo; pensei em meu desespero, minha vontade de saltar. Tentei explicar isso àquele homem, mas creio que o fiz de maneira desconexa:

一 O que me segurou na vida foi exatamente o menino, o senhor compreende? Isso quer dizer que o senhor está querendo tirar minha segurança. O senhor está me empurrando para a água. Saiba que estudei o assunto. Não quero ser colhido pela hélice. Devo ser arremessado ao sotavento, a meia nau; acredito que, com o impulso e vinte braçadas fortes estarei livre de qualquer perigo; poderei então resolver meu caso em perfeita paz. Se a Companhia não faz objeção prefiro que se organize isso, vamos supor, a uns 24 ou 25 graus de longitude oeste, 6 ou 7 de latitude sul; telefonarei para um comandante que é meu amigo, mas suponho que nessa zona praticamente não haja tubarões, e a temperatura da água é quase sempre agradável; além disso estarei bastante afastado de todas as correntes, a profundidade é mais que suficiente para afogar 3.000 segurados de sua excelente Companhia, um em cima de outro, em pé; devo dizer que dispenso quaisquer cerimônias religiosas. Quanto à tarifa de viagem, suponho que no Lloyd Brasileiro conseguiremos uma redução substancial, em vista das circunstâncias. Não sei se eles trabalham com essa modalidade de passagem e qual o prêmio que cobram; nem se poderei fazer um seguro de desembarque em terra, quero dizer, para cobrir a eventualidade de eu chegar a um determinado porto. Espero que o senhor…

Ele, porém, tinha se aproximado da porta, sobraçando sua odiosa pasta negra; balbuciou algumas palavras e retirou-se com certa humildade.

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
x
- +