Trabalhadores cariocas

Rua da Carioca, Centro, Rio de Janeiro-RJ, 1940 década. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.

De manhã cedo, no compasso preguiçoso do raiar do dia, Rubem Braga botou a chaleira no fogo para fazer café e abriu a porta do apartamento para recolher o pãozinho costumeiro, deixado pelo padeiro. Mas não tinha nada lá. No mesmo instante, lembrou-se “de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a ‘greve do pão dormido’” – não muito bem uma greve, mas “um locaute, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno” achando que “obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido” conseguiriam não sei o quê do governo.

O cronista tomou seu café com pão amanhecido, “que não é tão ruim assim”, e recordou-se de “um homem modesto” que conheceu. Toda manhã, quando ia deixar o pão na porta, apertava a campainha e gritava logo, “para não incomodar os moradores”, que não era ninguém, era O padeiro. “Então você não é ninguém?”, perguntou Braga, também ele um trabalhador noturno, que muitas vezes saía da redação de madrugada levando na mão “um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno”. Abrindo um “sorriso largo”, o homem explicou, “sem mágoa nenhuma”, que era o que as empregadas domésticas que o atendiam costumavam dizer para as patroas: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”.

Do mesmo apartamento, Braga escutava o pregão de um homem que equilibrava “vassouras, espanadores e cestos” sobre os ombros. O vassoureiro era “grande, grosso” e tinha os bigodes vastos como as vassouras que vendia, igualzinho a “todos os de seu ofício”. Aos 50 anos, pensou o cronista, talvez desse um bom vassoureiro de bairro – trabalhador útil à sociedade, que torna “a rua mais solene” enquanto anuncia seus produtos com voz grave e passo lento –, embora o escritor julgasse o ofício do ambulante muito mais nobre que o seu, de preencher laudas.

É claro que nem todo trabalhador inspira parágrafos poéticos. Otto Lara Resende escreveu sobre a Malandragem epidêmica que assolava o Rio nos anos 90. Todo mundo sabe que a “mania de esperteza” de passar os outros para trás data “do tempo em que Adão jogava pião”, mas a tática da bandalha se aprimorava rapidamente e tinha encontrado no banco do táxi um pouso confortável. “A falta de escrúpulo com que o chofer de táxi trata o passageiro”, furtando no taxímetro ou encompridando a corrida, faz com que cliente e motorista atravessem a cidade num “clima de recíproca desconfiança”. E “nessa atmosfera em que ninguém confia em ninguém”, tudo vale: “Ganha o mais vivo. E bobo é quem paga o pato. A vítima, além do mais, tem culpa”.

Quem também penou dentro de um táxi foi Carlinhos Oliveira. Problema nenhum o motorista ter dado “uma freada violenta para não bater no fusca que ia na frente”, mas quando ele botou “a cabeça do lado de fora para xingar” e ameaçar o fusquinha, o cronista começou a suspeitar que estava sendo guiado por um “maluco”, com “a nítida impressão” de encontrar-se “à mercê de um homicida”. Pelas ruas, de carro, passaram por um colégio no horário da saída. O taxista “deu uma boa risada” e compartilhou memórias da infância reavivadas pela cena. E então, de repente, aquele homem passou de “assassino latente” para alguém “manifestamente terno” – uma evolução, sem dúvida.

Mas a sensação de alívio durou pouco: diante de um daqueles engarrafamentos em “que ninguém avança”, o motorista pediu autorização para entrar à direita e arriscar uma saída. O cronista concordou. E assim, sem cerimônias, percorreram seis ruas “na mais descarada contramão”. Tratava-se, agora estava claro, não de homicida nem de samaritano, mas de um suicida potencial. Restava fechar os olhos e torcer pelo melhor.

Enquanto isso, da janela de sua casa, Antônio Maria espiava a rotina de uma família de trabalhadores composta por duas mulheres, um homem robusto, “um menino de cabelos alourados”, “um cachorro bem-humorado e um casal de patos”. A vida observada não tinha nada de extraordinário: uma das mulheres, “com uma tábua em cima de dois caixões”, passava roupa a ferro. A moça “passando, passando, o menino passando e fazendo artes, o tempo passando” e, com a noite, as obrigações passam para o dia seguinte. Amanhã, “eles serão a mesma coisa da véspera”.

O homem levantou cedo, fez um carinho no cão e subiu a pedreira com “um pano de estopa no ombro” – “é esse homem um dos que fazem tengo-tengo nas rochas o dia inteirinho, com o seu martelo quebrador”, cujo som só para com a sineta que toca pontualmente às sete, às onze, às doze e às cinco. No quintal, o menino disse “uma coisa que não deve” e foi repreendido com um nome feio pelas mulheres, e os três começaram a rir, sem nem suspeitar que Maria estava olhando. “Essa intimidade, esse entendimento, esse viver à vontade” deu no cronista “uma densa emoção de simpatia humana” por aqueles trabalhadores que “estão rindo em vez de desesperar, rindo alto, sem ajuda de nada, sem haveres no dia seguinte a não ser o sol e, logo a seguir, a primeira sineta”. Os dois patos, com o rebolar desengonçado, andavam “pra lá e pra cá”. O cachorro, “aos saltos, perseguia uma mariposa”. E, em seguida, escureceu.

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Nota do Editor: Embora não tenha sido um trabalhador carioca, não poderíamos deixar passar batido o aniversário de Jurandir Ferreira, que completaria, nesta semana, 117 anos. Cronista, contista e romancista de alto apuro formal e estilo leve e sedutor, Jurandir tem, como poucos, “domínio sobre o instrumento difícil que é a nossa língua”, nas palavras do crítico Antonio Candido. Infelizmente, seu livro mais famoso de crônicas, Da quieta substância dos dias, está fora de catálogo. Mas uma boa seleta do cronista se encontra disponível aqui no Portal: “A viagem”, lida pelo escritor Tadeu Rodrigues, pode ser um ótimo começo para a sua leitura.