Os manequins profissionais não têm cara, são capa; não passeiam, passarelam; não veem, são vistos (e revistos). Vivem um pouco (nem tanto) ‒ uma vida magra de curvas e cheia de ângulos; sérios em sua ambição de confirmar a teoria de que um vestido é feito mais para o osso que para a pele, pulando de uma expressão para outra como se conformados, o dia inteiro, com um metteur-en-scène invisível; possuídos pelos seus próprios corpos, as almas neles envolvidas são donas de alguns ossos e pouco mais.

São uma classe finíssima (no pisar e na translucidez) e unida (como na aderência do osso à pele) de dimensões longilíneas e diapasão esgalgo. Osso e pele, escudo em opostos, são vagos e no entanto determinados, impessoais e mesmo assim únicos; dão a impressão de que, quando despem o Dior ou o Balenciaga, não ficam nus, mas expostos. Não desarrumam, não despenteiam, não perturbam a atmosfera quando cruzam passarelas. Se você olhar fixo por mais de 30 segundos para o manequim, verá através: a transparência é sua principal dádiva aos homens.

Todos nós existimos em séries. Somos uma porção de meias-horas, duas horas, 24 horas. Um manequim é feito de segundinhos espaçados, aquela fração que a luz leva para atravessar a objetiva, interromper-se no diafragma e calcar-se no filme do interior da câmera fotográfica. Nesse ventre em negativo celuloide e papel, o manequim sofre o processo químico de sua genealogia (os manequins se reproduzem em todos os climas e condições, bastando haver por perto uma câmera fotográfica). Está preso para sempre no clichê, no off-set, na rotogravura, dentro de um amarelo, entre uma pulseira e um coqueiro, suspenso pelo fio de Helanca, a anunciar, da revista, que a nova moda é esta: esguiar.

O manequim leva uma bolsa como quem leva uma vida. Na bolsa pode-se encontrar quase tudo de que é feita sua alma: espelho, pó de arroz, endereços antigos, nomes ilegíveis e abreviados, sobrenomes esquecidos.

O manequim, num canto do salão, encontra o outro manequim. Os dois param e, encarando-se, ajeitam o cabelo, dão um retoque nos lábios: exatamente como se diante de um espelho. Têm razão, pois estão.

Mas há mais surpresas no manequim: lá, onde a pele não interessa, descobrimos os ossos mais inesperados, deixados à maneira dos piratas a fim de indicar tesouros escondidos em praias das caraíbas (trecho da prece de um manequim: “... e depois deste osso, e desse e daquele outro, prestai atenção, Senhor, pois ainda há mais ...”).

Mas a cada foto o manequim perde um pouco: um órgão interno utilíssimo, um jeito só seu de reclamar. E leva cada vez menos de si ao amante. Este o recebe com cuidados adiposos e o medo de que ele (além de quebrar) continue com o delírio diáfano de todo manequim: emagrecer, emagrecer, cada vez mais até que a gravidade perca seu sentido e, na vertical vertiginosa, ascender a todos os céus e ir posar ao lado de todos os anjos.

Soa-me desarmoniosa esta elegância de manequim. Mulher nenhuma tem o direito de sorrir assim, como se tivesse colado grau em sexo. É preciso tropeçar para acertar o passo, despir para vestir. Falta, em alguma parte do manequim, um elemento de colesterol, um salto quebrado, erro, imprecisão, excesso de proteína, para que eu possa me reconciliar com a noção de que nem sempre toda boniteza quer dizer delicadeza.

ivan-lessa
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