Andam as pessoas por aí em badalações ― que Dama Fulana fez 40 anos de pífia prosa e 35 anos de crochê, que o doutor Sicrano já completou bodas de ouro com as redondilhas e outro já tem bodas de diamantes com os pareceres jurídicos. E eis que se passam praticamente em silêncio os 40 anos de poesia do poeta propriamente dito: Carlos Drummond de Andrade. Praticamente em silêncio? Ah, engano. Não se passam em silêncio, se passam em mistério. Aquele denso mistério que envolve as Entidades, pois que poeta de tal porte não é gente de carne assim como nós ― não, não é gente, é Entidade.
Em vão nos contam que ele nasceu em Itabira, já neste leviano começo de século. Que foi integrante do movimento modernista, que, trasladado para o Rio, se dedicou ao serviço público, no qual se aposentou como integrante da equipe de Rodrigo, no Patrimônio Histórico. Que, jornalista profissional, escreve crônicas desde 1945, primeiro no Correio da Manhã, agora no Jornal do Brasil. Que é ou foi sócio de várias associações profissionais de escritores; que não sente pendores acadêmicos, antes arraigados despendores; que está traduzido e publicado em quase todos os países civilizados do velho e do novo mundo. Tudo isso contam dele, mas é prudente não acreditar só no que nos contam. A parte que nos contam são somente as aparências e há imensas coisas por trás dessas aparências, muitos mistérios e arcanos, dos quais os fatos aludidos são simples alegorias.
Principalmente se oculta por trás do nevoeiro dos fatos aquela presença condensada de forças que por comodidade chamaremos o Mistério Poético. As Entidades Raras, que vivem entre os humanos encarnados e que têm às suas ordens o Mistério Poético, tal um gênio familiar, nem sempre confessam os seus poderes de Mágica. Antes se disfarçam em homem comum, de calça e paletó, que anda em veículos públicos e pode até comer em restaurantes e se entregar a vários Momentos Levianos na companhia de amigos; mas num instante dado, não conseguem conter a pressão do Mistério que tem a força de uma maré e deixam que se escapem fragmentos, sob a forma de Poemas, mas que na verdade são Amostras daquela grande força encoberta pelo Mistério.
Faz agora quarenta anos que esse pretenso homem Carlos nos deixou receber a primeira Comunicação de Poesia. Vinha ela sussurrante e discreta (o Mistério não é de brados, senhores!) ― Vinha tímida e desarmada:
“―... quando nasci um anjo torto, desses que vivem na sombra...”
Era o Primeiro Sinal.
Daí para diante os Sinais não se calaram. Andam pela ionosfera como ondas de rádio, passam pelo céu feito clarão que momentaneamente se liquidifica em palavras ― as belas e singelas palavras que são a matéria da poesia! ― e deixam um Poema gravado indelével e depois seguem a sua curva, invisíveis, indetectáveis, até a aparição seguinte.
Como se sentirá o Poeta ante o assalto da poesia? Criador, intérprete, médium ― ou antes sentirá que a poesia é a sua essência, as duas naturezas se confundindo, aquilo que é ele mesmo, homem, e aquilo que é Ela própria? Se sentirá possuído, danado pela poesia? Se desligará da poesia, passado o momento da comunicação?
Diz que o jubileu dos 40 anos chama-se bodas de esmeraldas. Esmeraldas serão, contudo, novidades para outros, não para ele. Esmeraldas e brilhantes e toda espécie de pedras, inclusive aquela pedra negra que é ferro puro, da sua cidade natal. O Poeta é dono de tudo, e não só das pedras; faz transfigurações e malabarismos. Com o seu sentimento do mundo, encontra a noite que dissolve os homens. Fazendeiro do Ar, zomba da morte no avião, e nos terrenos invioláveis do Brejo das Almas, onde as casas dormem bêbedas, planta a sua rosa do povo que, no entanto, jamais será aquela rosa do Anúncio. Ele é o decifrador do Claro Enigma, é o cantador da xácara do vestido, última peça de luxo daquela dona perversa. Os tristes amores do padre que furtou a moça foi ele que descobriu. Tudo ele viu, tudo ele sabe. Não falei que tal onda da poesia é como onda de rádio, levando música e iluminação por toda a volta do mundo ― acompanhando as curvas do mundo, cortando equador, trópicos, polo austral e boreal?
O Poeta faz as suas Bodas de Esmeraldas com a poesia. Amaram-se, atormentaram-se, tiveram muitos filhos ― exatamente doze livros de poemas que já se multiplicaram em netos e bisnetos por coletâneas e antologias, sendo que muitos deles adquiriram nacionalidade estrangeira. E ainda assim continua fecunda essa sempre amada do Poeta ― ela é como a velha Sara no leito do patriarca Abraão. O tempo não lhe resseca a entranha, não lhe rouba a flor nem o fruto, antes cada vez mais lhe apura a cor e o grão, num renovado e incomparável milagre.