A face rosada e larga, os bigodões de comandante pirata, os longos cabelos brancos, o permanente sorriso. Era esse Noel Nutels, o doutor Nutels, judeu alagoano, espécie rara.
Segundo ele, nunca passou de médico sanitarista; o fato de exercer o sanitarismo entre os índios não alterava em nada a profissão. Seria o quarto mosqueteiro entre os irmãos Vilas Boas, e a morte de Leonardo lhe deu o terceiro lugar. Acima deles, só Deus do céu pode ser responsável por mais índios salvos na mata brasileira — salvos de tiro, de doença, de criminoso, de aventureiro, de missionário inconsequente, — do mundo, do diabo e da carne.
Filho da Diáspora, nascido na Ucrânia, emigrado menino para o Brasil, foi-se entender de gente em Laje do Canhoto, Estado de Alagoas. Mas o país dos paus-de-arara não o interessou especialmente, como mais tarde parece que o não interessou Israel, em verdade tão parecido com o Nordeste. Formado médico no Recife, derivou para o Rio, como quase todos nós. E eis que de repente, como os outros têm uma revelação e se fazem apóstolos, caudilhos ou conquistadores, a revelação de Noel Nutels aconteceu e ele descobriu a paixão da sua vida: o índio.
Dá para a gente pensar em reencarnação. Pois que afinidade especial poderia existir entre aquele filho de antiquíssima civilização, herdeiro de uma cultura milenar e sofisticada, mestra de nós todos — e os inocentes bugres da mata brasileira, vivendo nus em plena Idade da Pedra? Isso ninguém sabe, talvez nem Noel soubesse. Só se conhecem os fatos, em sua cronologia: ele era médico sanitarista a lutar contra a malária, aqui na Baixada Fluminense, quando João Alberto o convidou a ir desbravar o sertão goiano. Tratava-se de região paludosa e, para a tornar habitável, o dr. Nutels se fez engenheiro e procedeu a grandes obras de drenagem que realizaram o milagre.
Daí partiu para a expedição Roncador-Xingu, outro marco na história do nosso indigenismo. Desde então, durante quase 30 anos, Noel Nutels não mais se afastou dos índios, tratando-os, imunizando-os, defendendo-os, convivendo com eles, na base da amizade e da confiança. Porque ele descobrira que, embora nu e selvagem, índio é gente como nós e tem direito legítimo ao seu quinhão, na herança da condição humana.
Só a doença fatal trouxe Noel Nutels de volta definitiva à cidade. E felizmente o mal que o matou não foi moléstia apanhada na selva, o que seria uma injustiça; com a malária do Xingu até que ele aprendera a conviver muito bem! Noel Nutels foi homem de alta inteligência, mas creio que sua qualidade principal era o dom de amar e fazer-se amar. Fosse Canatu, caboclo do mato pintado de jenipapo, fosse o poeta Manuel Bandeira, o pintor Di Cavalcanti, o sertanista Vilas Boas, o sofisticado Antonio Houaiss, ou esta velha jornalista que o conheceu ainda rapaz — só de vê-lo, de ouvir-lhe o sotaque inconfundível, o coração da gente se abria.
Três dias antes dele morrer, escrevi descuidosamente o nome de Noel Nutels num artigo a respeito dos Vilas Boas. Quando o artigo saiu no domingo, ele já estava no seu velório. Assim é a vida, hoje você, amanhã nós. Adeus, Noel.