Chamavam de polaquinha, mas não era certo, era despeito de concorrente. O pai era lituano, a mãe filha de austríacos, mas já nascida no Brás; chamassem italianinha ainda vá, porque afinal ela tinha um pouco de sotaque de quem viu a luz do dia num apartamento da própria avenida Rangel Pestana, São Paulo. Hoje, porém, se considerava carioca da Leopoldina, morando entre Olaria e Penha. Bonita, sobre grandona, pé grande, mão grande, dente grande. Não loura, mas ruiva, desse ruivo que, nos tempos de dantes, era feio, chamavam até de fogo-foguinho. Mas moda chega a influir na cor das pessoas — aliás eu sempre achei lindo — agora é louro tiziano, acaju, tem um cartaz louco. Começou a ser bonito depois de fita tecnicolor, quando se viu que tanta estrela de cinema de beleza célebre era strawberry blonde, quer dizer loura cor de morango ou ruiva mesmo. Se registrou por Karla, mas depois acabou a letra k no alfabeto brasileiro e, então, mudou para Carla, que ela até gostava mais.
O pai tinha sido serralheiro na Lituânia; aqui tinha uma pequena fábrica, nascida da modesta oficina onde trabalhava em fechaduras. A mãe começou de garçonete em cantina, mas depois da mudança para o Rio esqueceu esses começos. Ajudava na fábrica, tomava conta da escrita e era quem conversava com os fiscais e fazia a correspondência dos fregueses. E ainda dava pensão aos quatro operários. Economia, economia, trabalho dia e noite, o pai era ao mesmo tempo dono, gerente, capataz e primeiro torneiro; — passados cinco anos, já tinham comprado a casa de moradia com o galpão no fundo onde funcionava a fábrica; educaram a menina em colégio particular; quando Carla ficou moça, eram sócios-proprietários do clube do bairro, compraram carro e um pequeno apartamento em Teresópolis. Falar franco, foi surpresa quando a menina saiu favorita para representar o clube no concurso de miss. A mãe vibrou e o pai levou muito a sério. Na terra dele, filho de operário não passa disso e aqui já era industrial e a filha se sobressaía assim. Quem achou ruim foi o namorado de Carla, um nortista compridão de cabelo louro e olho garço, cujo maior orgulho era ser confundido com estrangeiro — inglês, principalmente. Ele, então, explicava com displicência que era pernambucano da gema, mas tinha sangue de flamengo e ficava aborrecido por acharem que ele não tinha tipo de nortista. Nortista louro é o mais que dá, o erro é vocês só considerarem nortista esses batorés amarelinhos, cabeça chata. Marta Rocha é baiana, não é? Juarez Távora é cearense, não é? Tudo nortista. Mas, no Norte, não dão valor a louro, só aparecem os cara de bugre. Ele se chamava Eurípedes e se dizia corretor de automóveis, mas, na verdade, de ofício era manobreiro na garagem de um edifício no Flamengo, e corretor só nas horas vagas. Assim mesmo, ficou danado quando a menina saiu miss. Quis proibir, e por ela cedia, mas nem a mãe nem o pai abriram mão. Uma promoção daquelas quanto dinheiro valia, Carla estava ali, estava com contrato no cinema, ou teatro, ou modelo; no mínimo podia casar com milionário, como as outras. E se chegasse a Miss Guanabara, Miss Brasil e — sonhar não é proibido — Miss Universo? Aí o céu era o limite e o fato é que Carla tinha tudo para agradar aos americanos — altura, cor, perna comprida, sem contar que falava o seu tantinho de alemão. E uma das vantagens menores do concurso seria justamente acabar com aquele namoro que tirava o sono dos velhos. Carla, porém, chorou muito quando Eurípedes lhe deu o ultimato — ou larga ou briga — mas acabou brigando, título de miss não se apanha pelo chão. E o que mais lhe doeu foi ele, na hora da zanga, dizer que ela estava perdendo um grande amor só de boba, que era mais fácil ele sair senador do que ela passar de miss de subúrbio, com aqueles tornozelos de pilão, e aqueles dentes de cavalo de corrida.
Gastaram trinta contos no vestido de baile para o desfile, o jornal disse oitenta — bem, mas não pagaram a costureira que aceitou fazer pelo reclame, fosse pagar seria oitenta mesmo. Todo em brocado rosa estilo Farah Diba; desbotou um pouco o rosa do pano com o ruivo do cabelo, bem que a costureira disse que aquele modelo pedia uma morena de tipo dramático, mas Farah Diba sempre fora a heroína de Carla e todo o mundo sabia que ela dava sorte.
A campanha era dura; não fosse por Dona Edwiges, a mãe, talvez Carla desistisse. Como a velha dizia, ela é que merecia ser miss — aliás ser mãe de miss é mais difícil do que ser a dita; tem tantos macetes, aí é preciso a pessoa saber jogar de letra. A menina todo o mundo adula e chama meu bem, mas a mãe é que se vira e leva os empurrões, discute os cachês, o quarto do hotel, a divisão dos brindes, o retrato nas reportagens. Vá ser mãe de miss pra você ver!
Carla não tinha cabeça senão para os desfiles e os treinos e assim mesmo sentiu dor amarga durante a feijoada dançante que o clube ofereceu à miss; o tal de Eurípedes arranjou convite, compareceu e não largou daquela desquitada manjadíssima, a Sueli, que tinha concorrido para miss e foi desclassificada porque o regulamento pedia moça solteira; e o Eurípedes disse numa roda em que Carla estava que essa exigência de moça solteira não tinha valor — porque saber se é solteira, ainda vá lá, mas moça, jurar ninguém pode; e se a questão é para ser livre e desimpedida, desquitada também é, pode-se mesmo dizer que é tecnicamente solteira. Carla até chorou porque era tudo indireta e D. Edwiges não sabia onde estava que não quebrava a cara dele. Imagine que Sueli não tinha nem 1,60 de altura, podia ser miss em concurso de anão, também Dona Edwiges disse bem alto.
Mas aí chegou o dia do Maracanãzinho e o clube era muito desorganizado e a torcida não funcionou. Carla, de tão nervosa, já estava era meio biruta, e tomou quase três vidros de Maracugina, tremia tanto, calmante não adiantava. Também ela desfilou logo depois da Miss Botafogo, que era predileta da torcida. No vestido de baile não foi tão mal, mas no maiô não dava nem para a saída. Culpa do clube que não prestou apoio, D. Edwiges achava que nunca tinha visto uma diretoria de clube tão sem iniciativa como aquela, não distribuíram flores, nem nada.
Foi, então, que aconteceu que, quando Carla voltava já pela passarela, depois de tropeçar na pirueta diante do júri (o beiço quase tremendo e o rosto decomposto pela angústia, com a impressão de que o pessoal do júri estava dizendo que é que aquela ruiva grandalhona vinha fazer ali no meio de tanta morena ardente) deu com os olhos em Eurípedes, na primeira fila, sentado bem agarradinho com a Sueli. Mas aí o pernambucano fez uma coisa linda: Sueli tinha na mão um buquê de cravos vermelhos que trazia para jogar na sua predileta, Miss Monte Líbano. Pois Eurípedes lhe arrancou o buquê das mãos e os atirou como uma chuva em cima de Carla. Ela tinha parado com o choque de o ver, e assim colheu nas mãos alguns dos cravos. Sorriu, apertou as flores contra o peito; o pessoal da assistência rompeu em aplausos, e afinal Carla saiu pisando pela primeira vez ondulado e altivo como uma rainha carioca e teve gente até que pensou — se não fosse tanta injustiça aquela menina tinha chance para finalista.