Há temperamentos urbanos por nascimento, mas há, igualmente, os temperamentos rurais. Uns só podem viver no asfalto, embalam-se com o escapamento das lambretas, escutam a voz dos anjos no rádio do vizinho e vão para a fila da carne como para festinha de aniversário. O rural, ao contrário, só consegue viver na cidade como escafandrista debaixo d’água: de vez em quando carece ir à tona, a fim de se livrar da pressão; doses ilimitadas de cidade são, para tal gente, perigo de morte certa, bolha de ar no sangue, pulmão achatado, colapso periférico.
Que fazer se sou um desses — se aqui em casa somos rurais?
Eis por que esta semana me parto, em procura do retiro sertanejo de todos os anos. Alguns meses passaremos entre céu e terra, sem edifícios nem ruas, nem lotações, nem política, nem literatos, nem teatro, nem cinema; nenhum dos encantos da civilização a prejudicar o indispensável recolhimento pelo qual a alma chora e que o corpo não dispensa, sob pena de morrer ou enloucar e sair brizolando por aí, atirando pedra em quem não merece.
Dirá quem não gosta de mim que isso é folga, que lugar de cronista é no asfalto, e que só se podem comentar acontecimentos estando no meio deles. E eu responderei que folgados têm muitos, mas não sou desses, minha lei e minha fé é o esforço e o sofrimento; e lembrarei também a verdade elementar de que não há perspectiva sem distância, e se há uma coisa neste país de que carecemos tanto quanto de divisas fortes, é de perspectiva. Vivemos dentro demais dos acontecimentos, somos absorvidos por eles, sugestionados por eles, exacerbados por eles. Eles é que nos arrastam, não somos nós que os esmiuçamos. Tão de perto, perde-se a faculdade de raciocinar e julgar; por causa do contágio da proximidade só se reage emocionalmente, berrando, aplaudindo ou chorando. E cito o exemplo clássico do personagem de Stendhal que esteve dentro de toda a melée da batalha de Waterloo e não dava notícia de nada, ou o exemplo menos clássico da porta-estandarte de escola de samba que me confessou a coisa que mais tinha vontade de ver na vida: era um desfile de escola de samba!
Envolvida pela fofoca, o transitório, o gás néon, perde a gente aqui os olhos de ver as grandes coisas.
E tem mais: lembremo-nos de que hoje em dia já não há isolamento campestre que nos afaste do noticiário. Na selva mais perdida basta um pequeno transistor para nos transformar na testemunha auditiva da história. Todos os fatos do Mundo, de Paquetá ao Vietname, passando por Estocolmo e Brasília. Que vale a distância quando temos as asas do rádio?
Tendo, pois, a distância e a perspectiva, que é que falta? Pode faltar talento, mas isso não é mal em que a geografia influa.
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Vocês aqui, e nas outras cidades grandes, pensam que são os únicos seres vivos do mundo — ou pelo menos do só mundo que interessa. Talvez, talvez contudo, ainda sobre muito mundo por aí. Vocês são os dançarinos no palco e não enxergam a plateia no escuro, por causa dos holofotes que só botam luz no pessoal do balé. Porém, há mais gente do lado de lá do que do lado de cá. Deixem-me ir para lá um pouquinho, para ver se lhes mando o eco do que vocês cantam, para lhes dizer na verdade se vocês funcionam e estão vivos. Lá para onde eu vou tem milhões, sim, milhões mais de povo do que aqui. Vocês não sabem deles, mas eles sabem de vocês. A comparação da plateia é certa: lindo pode ser o espetáculo, mas sem plateia não tem razão de ser; só da plateia é que parte a ovação ou a pateada.
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Meu Deus, estou falando tão bobo, cheia de imagens e de charadas, mas é isso —preciso mesmo sair de baixo da pressão, limpar o sangue. Sentiram o drama?
O doutor bota aqui a lei do arroz, do açúcar ou da carne — deixem a gente ir ver como é que essa lei funciona lá no roçado onde o arroz nasce!
E essas reformas, e essas novidades e essas promessas e pior que tudo as ameaças — quero ver de lá, sem que nenhum homem da televisão me ensine. Mesmo porque — por ora só vai haver carnaval e nada mais, e na hora da angústia cívica nem carnaval consola. Ou consola demais, o que também é uma imprudência.
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Enfim, enfim, as desculpas são muitas, mas a verdade é uma: está chovendo no Ceará que é uma beleza... Adeus, Guanabara, adeus!