O caso sucedeu no lugarejo Alto Santo, na ribeira do Rio Jaguaribe, zona de carnaubais.

Um caboclo da terra se casou com uma moça bonita. Detalhes não me contaram de corpo ou de cara, disseram só que era bonita, e havia de ser mesmo: pelas desgraças que arrastou ganhava até da eterna Helena. Sendo ainda recém-casados, foram o caboclo e a moça, nesse período de amores em flor, dançar num samba que se dava nas redondezas.

Dançou a moça principalmente com o marido; mas, como além de bonita era nova e animada, foi tirada muitas vezes, principalmente por quatro cabras forasteiros que entraram na festa porque pagaram a cota, mas a convite de quem, ninguém sabia. O marido não morria de ciumento; deixava que a mulher se divertisse, mas não poderia deixar de fazer reparo nos estranhos e no exagero da atenção que lhe davam à mulher. Em vista disso saiu mais cedo, alegando que moravam longe e que ainda tinham de romper mais de légua de caminho.

Mal chegaram em casa — que ficava isolada, com um pequeno terreiro e um quintal aberto entre as carnaubeiras cerradas, nem tinham tido tempo de mudar a roupa, e ouviram chamar à porta. O caboclo verificou, com surpresa, que ali estava um rapaz das redondezas, seu inimigo de muitos anos. Estranhou tal pessoa, em tal hora. Mas o outro explicou depressa: ao sair da festa, ouvira os quatro cabras estranhos se combinando para lhe virem atacar a casa e roubar a mulher. E, assim, apesar da intriga velha entre os dois, com todo o gosto se oferecia para ajudar na defesa, que luta de quatro contra um seria desigual por demais.

O caboclo pensou que tolo será quem não escuta um aviso, venha de onde vier; mas tolo e três vezes tolo quem mete inimigo porta adentro, mormente em hora de aperto. Falou, portanto, que estava muito agradecido, mas sem soberba dizia que ele sozinho era homem para defender sua mulher e sua casa não só de quatro, mas de 40 que aparecessem. O outro então encolheu os ombros, respondeu que obrigar ninguém podia, deu boa-noite e partiu.

Mal saiu ele, o caboclo, — se enjeitara o auxílio, não lhe enjeitou o aviso, mandou a mulher se trancar na camarinha, que é uma alcova de três paredes lisas, sem janelas, com uma única porta que dá para corredor. Contou-lhe o que havia, encomendou uma e dez vezes que não saísse do quarto por lei nenhuma, quer ouvisse tiros, quer ouvisse luta, — senão quando ele próprio com a sua voz a chamasse. Ouviu a rapariga correr a taramela; e através da porta mandou-a se ajoelhar junto ao oratório e pegar no rosário.

Subiu então para o sótão, onde ficou de atalaia. Todas as casas daquela zona são feitas com telhado de duas águas, uma caindo para a frente, outra para trás, sendo a fachada assim como um chalé visto de perfil. E, aproveitando a altura desmedida da cumeeira, o pessoal de lá arma um sótão assoalhado com troncos de carnaúba, que vai de oitão a oitão. Serve este sótão para o paiol da rapadura, da cera, do feijão e do milho colhidos nos fins d’águas e que devem chegar até ao ano seguinte.

Encastelado no sótão, esperou o dono da casa a chegada dos atacantes. Tinha rifle e munição. E das janelinhas de cima ficava com vista para toda a volta da casa, podendo descobrir quem se aproximasse de qualquer ponto cardeal.

A noite era clara, de lua. Não se passou meia hora e, de longe, o caboclo avistou o grupo dos quatro, que saíam debaixo das palmeiras. Viu quando se dividiram, dois para a frente, dois para os fundos.

Escolheu para começo os da frente. Esperou que os cabras parassem, fez pontaria e atirou. Um dos homens, atingido no peito, foi tombando para diante: teria caído se o não amparasse o companheiro. Este, enquanto segurava o ferido, ergueu o rosto para cima, procurando ver de onde partira a bala. Por isso foi que recebeu a sua entre os olhos. Caiu em cruz em cima do outro, que ficara estrebuchando no chão e deitando uma escuma vermelha pela boca.

Mas enquanto o dono da casa liquidava os dois atacantes da porta da frente, os atacantes dos fundos tinham ficado à vontade. E quando, terminada a primeira parte da tarefa, procurou o caboclo a janela de trás, viu que um dos cabras acabava de forçar a porta, enquanto o outro de arma na mão, montava guarda. Foi fácil fazer alvo nessa sentinela imóvel e derrubá-la. Era o terceiro que caía. O quarto, porém, entrou na cozinha.

Durante esse tempo todo a mulher ficara na camarinha; a princípio se manteve em silêncio, rezando; mas, um atrás do outro, escutou os três tiros: foi se apavorando, pegou a chamar o companheiro, aos gritos. Ele, coitado, como é que podia responder? Se falasse, logo o outro o localizava e a sua única vantagem era a surpresa. Por isso, deixava sem resposta os apelos da pobrezinha que, afinal, sentindo maior o medo de uma desgraça do que o temor do marido, desobedeceu ao mandado dele, correu a taramela da porta e ganhou o corredor.

Quando ela saía, entrava na cozinha o quarto atacante. O primeiro grito da moça foi para o seu homem, que ainda estava lá em cima. Vendo-se sem resposta, cuidou ela que o marido era morto: assim mesmo de mãos nuas se botou para o bandido e com ele se agarrou. O malvado, esquecido da tenção com que viera ali e que não seria propriamente liquidar com a tamanha beleza — puxou a faca do cinturão. Ela parecia uma fera, usava unha e usava dentes, nem sentia a faca lhe picando os braços; mas teve de cair quando o homem perdeu a paciência e a apunhalou no peito.

O marido descia então a escada e chegou a tempo de ver a mulher cair. O quarto atacante foi fácil de matar, imóvel, curvado sobre a moça caída. O tiro o apanhou à queima-roupa.

Contudo o caboclo chegara tarde: a moça já estava morta e num instante o sangue dela, empoçado no chão, começou a coalhar.

Quando se desenganou de salvar a mulher, levantou-se o caboclo, de dentes trincados, agarrou pela perna de cada um dos quatro bandidos, um dos quais não estava morto direito e ainda arquejava. Assim mesmo sucessivamente os arrastou de terreiro afora, até a orla do carnaubal, onde os amontoou.

Passou o resto da noite sentado no chão, com o corpo da mulher no colo, chorando e se despedindo dela. Ao clarear do dia foi apanhar a enxada, abriu uma sepultura no oitão da casa, junto à parede do quarto que fora a alcova de ambos. Cortou todas as zínias, resedás, manjericões e rosas-amélia do quintal — plantas que ainda datavam do tempo de sua finada mãe, — e forrou a cova de flor e folhagem. Chorando sempre, deitou a moça morta na mortalha verde, ainda trajada no vestido novo da festa, que ela não tivera tempo de mudar. Cobriu-a de terra. E feito isso saiu para a vila, a fim de se entregar ao delegado.

Contou a sua história; e o delegado o levou de volta ao local dos crimes, acompanhado de duas praças — era a máquina da justiça que começava a funcionar.

Ao se aproximarem da casa o sol andava no meio do céu, sendo por volta do meio-dia. E o caboclo teve o gosto de ver que já estava dando urubu na carniça dos assassinos, amontoada ao pé da carnaúba grande. E quem sabe um deles ainda era vivo.

rachel-de-queiroz
x
- +