A vantagem destas agruras, por que estamos passando os cariocas, é que, chegando o tempo de guerra de verdade, ninguém mais estranha.
Vamos adquirindo a resistência espartana dos habitantes de uma cidade permanentemente sitiada, os quais pouco a pouco dispensam as amenidades da civilização. O cerco da nossa cidade aperta-se devagar, como os sítios antigos. Não tem nada da blitzkrieg que se costuma associar à guerra moderna. Conosco é no velho sistema medieval de aos poucos fechar todas as entradas, e aos poucos, lentissimamente, matar a população pela fome, a sede, as doenças e o desespero.
Devagarinho. Mas sempre. Está todo dia faltando qualquer coisa. O leite. Quantas semanas faltou leite? A carne. O feijão, o açúcar, o arroz. O pão! A manteiga. Reparem que não falta nem peru, nem champanhas, nem uísque escocês, nem presunto tender made, nem patê de foie gras, nem marrom-glacê. Isso aí tem às pampas pelas lojas de comestíveis grã-finas. Falta sempre é o essencial. O comer de cada dia. O que faz as criancinhas chorarem e as mães de família arrancarem os cabelos.
Mas o cerco não fica nas provisões de boca, não. Tem que estreitar, tem que se apertar: é da sua dinâmica. Nos transportes, ora faltam trens, ora ônibus, ora lotações, ora bondes. Ou falta tudo junto, ou faltam em grupos de dois e três. A energia racionadíssima deixa as pessoas sem elevador (e há centenas de prédios aqui de mais de vinte andares e talvez milhares de dez andares para cima), interrompe operações quando o médico já tem o doente de barriga aberta. Os telefones: tão comprida, tão complicada, antiga e tumultuada é a tragédia dos telefones que o melhor é não falar nela. E a água, então? A água falta sempre, falta infalivelmente. Quando não é por motivo técnico, é por secura mesmo, por ato de Deus.
Agora é o gás. Mais de três milhões de pessoas, de repente, da noite para o dia, sem gás nos fogões. Sem nenhuma prevenção anterior. Sem nenhuma espécie de acomodação para uma cozinha de emergência, nos apartamentos minúsculos, nas quitinetes onde o bico de gás já atrapalhava. Pensem vocês nos hospitais sem fogo para ferver água, para esterilizar aparelhos, para cozinhar a dieta dos pacientes. E os colégios? E os hotéis? E ainda há sonhadores que falam em turismo para o Rio!
E o cerco se fecha. De repente, sem que se soubesse como, operou-se mágica, e o carioca viu-se sem bombeiros e sem polícias, subtilizados para outra freguesia. Já não bastava a intermitente falta de água que volta e meia impossibilita o trabalho dos homens do fogo. Não, havia que tirar os soldados do fogo, pessoalmente, o que foi feito. Da falta da polícia nem se fala. Deve-se ter pensado que ainda se assaltava pouco, se matava e se roubava pouco. E que o trânsito carioca poderia piorar um pouco mais, como piorou.
Mas se alguém pensa que com isso tudo irão nos debilitando, enfraquecendo, quebrando a velha fibra heroica e jovial do carioca, esses alguéns se enganam. O nosso padroeiro é São Sebastião, crivado de flechas e assim mesmo lindo e sorridente, nós saberemos honrar o nosso patrono. Vamos é ficando mais rijos, mais provados. Podem nos atirar à cara as greves que quiserem que já somos doutores em greves. O carioca sempre desaperta − não foi à toa que soube improvisar cidades de lata e tábuas nas arestas mais alcantiladas dos morros da cidade, quando não lhe deram casas para morar; sabe maneirar, dar jeito, tocar pra frente. Cozinha com caixote, graveto, jornal velho. Alumia até com candeeiro de azeite de carrapato − há muito pé de mamona viçoso nos monturos das favelas.
O mais duro é a comida. Mas até comida se arranja. Pescando cocoroca nas pedras, comendo gato (como já se come). E as cotias do Campo de Santana, os pombos da praça Floriano − os bichos do Jardim Zoológico que se guardem.
Barbaridade? É barbaridade, sim, mas gente cercada não tem escolha. Se duvidam, vou lhes reproduzir o menu de um restaurante parisiense, durante o famoso sítio que sofreu a cidade em 1870. O menu era do Café Voisin, de G. Braquenas, na rua de Saint Honoré 261 (publicado pelo L'art culinaire française, edição Flamarion, página 19, que garante a reprodução textual). Para o dia 25 de dezembro de 1870, 99º dia do cerco, o Café Voisin oferecia:
Hors d'oeuvre: Manteiga. Rabanetes − Cabeça de burro farcie. Sardinhas./ Sopas: Purê de feijão, consommé de elefante./ Entradas: Cocorocas fritas. Camelo assado à inglesa. Civé de canguru. Costelas de urso com molho de pimenta./ Assados: Pernil de lobo com molho de cabrito montês. O gato guarnecido com os seus ratos. Salada de agrião. Terrina de antílope com turfas. (Seguem-se as sobremesas e licores.)
Dizia o parisiense que o cerco teve pelo menos a vantagem de acabar com a milenar praga de ratos que atormentava a cidade: porque a população os comeu...
E não se diz, sem contestação, que o Rio de Janeiro é a verdadeira Paris da América?