Todos nós, velhos adversários do preconceito racial, na nossa legítima revolta contra a discriminação partida dos brancos, corremos o risco de cair no erro oposto e favorecer outro tipo de discriminação, partida essa dos negros. Tempos atrás, a propósito de um baile de debutantes negras em São Paulo, tive oportunidade de comentar o assunto. A questão está nisto: numa verdadeira democracia racial, não há como a gente se preocupar com a cor ou origem racial de qualquer concidadão; formar grupos separados de negros é tão errado quanto admitir grupos isolados de brancos. Ninguém é branco nem ninguém é preto, tudo é brasileiro. É verdade que sendo os negros até hoje uma minoria (minoria mesmo?) socialmente oprimida, o isolamento dos grupos de cor não nos parece tão odioso quanto o isolamento dos brancos. Seria mais uma represália, uma afirmação de força e crescimento social da minoria negra. Mas justamente a afirmação de força nesse sentido é que me parece totalmente errada, como errado é o sentido da represália: uma espécie de moral na base do “quem rouba ladrão” ou do “olho por olho”. A luta que devemos sustentar sem descanso é pela integração total do elemento de cor, até mesmo dentro das mais fechadas castas burocráticas e militares como dizem — não sei se é verdade — que são o Itamarati e a Marinha. Homens de toda origem racial e com qualquer cor de epiderme em perfeitos termos de igualdade com a pretensa elite branca, em quaisquer funções sociais e políticas.

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O presidente Jânio Quadros teve um gesto extremamente simpático, chamando para o círculo mais próximo dos seus auxiliares, vários intelectuais de cor patrícios. Entre esses vi com especial alegria o nome de um homem de alto valor, quer como erudito, quer como pessoa humana — o professor Edson Carneiro. Mas o que importa ressaltar é que, convidando Edson Carneiro ou qualquer outro negro do seu alto quilate para uma importante missão, o presidente não está distinguindo um negro, um brasileiro diferente dos outros — está distinguindo um brasileiro ilustre, nada mais. Edson Carneiro, fosse eslavo, chinês, hindu, pele-vermelha, seria o mesmo Edson Carneiro e valeria o que vale. Isso é que é preciso se levar em conta.

Não sei se me faço compreender bem na exigência dessa distinção indispensável. O que eu quero dizer é que chamando-os apenas porque são negros, se estaria reconhecendo formalmente essa sua situação de negros, o que já é inadmissível e até ilegal. De forma que o presidente não os terá chamado porque são negros, mas porque são bons, bons para o ofício de que os encarrega. Ouço dizer, entretanto, que se cogita em mandar para a África, em missão diplomática, alguns desses auxiliares de cor do presidente, e confesso que a ideia me deixa meio perplexa. Por que para a África? Por que lá é terra de negros? Mas nós, oficialmente, não distinguimos negros de brancos. Se eles são especialistas em política ou em economia africana, está certo. Mas se não o são, qual o motivo? Por que deixar que qualquer critério de cor pese na escolha dos enviados? Mesmo feita com as melhores intenções, não haverá uma discriminação encoberta nesse tipo de escolha?

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Hão de me responder que a democracia racial brasileira não é uma realidade, como a desejáramos. Sim, sei que ainda se comete aqui muita discriminação às escondidas (às escondidas, realmente, já que graças à Lei Afonso Arinos, discriminação racial no Brasil é crime e dá cadeia). E porque sabemos desse preconceito, dessa resistência não confessada, mas presente, é que festejamos o gesto do presidente dando a patrícios de cor o lugar que eles merecem.

Mas creio que o ideal seria distribuí-los, integrá-los conforme suas aptidões nos grupos de trabalho onde pudessem produzir melhor, e não os isolar numa espécie de um fechado staff de cor. Cor, aqui, não é nem deve ser motivo de solidariedade ou agrupamento. Por exemplo, o sr. Roland Corbisier, que é branco de origem francesa, se entende muito melhor com o sr. Guerreiro Ramos, que é homem de cor, do que com o sr. Eugênio Gudin, que é também francês por ascendência. É que Corbisier e Ramos são dos ditos “teóricos nacionalistas”, enquanto que o ilustre mestre Gudin é homem de pensamento liberal intransigente.

O que parece agrupar as pessoas de cor aqui no Brasil, numa camada social à parte, é muito menos o fator racial do que o fator miséria. O negro encontra dificuldade em subir socialmente, principalmente por causa da sua miséria, miséria a que foi atirado quando o 13 de Maio o tirou da senzala e do eito, mas, uma vez forro, o abandonou. Assim, o melhor meio de lutar contra o preconceito racial no Brasil é lutar em primeiro lugar pela elevação do nível de vida das chamadas classes desfavorecidas. Se o negro no Brasil ainda tem um acesso tão penoso aos degraus mais altos da escala social, quero crer que essas dificuldades lhe correm mais como pária social que é — analfabeto, desvalido, paupérrimo — do que propriamente como negro. Um caboclo amazonense, ou um caiçara do litoral aqui no sul, também nunca conseguem dar pra nada, embora não sejam negros. O mal pior não é a cor — é a miséria. Demos-lhes condição de homens — e eles saberão provar que são homens tão bons quanto os melhores.

rachel-de-queiroz
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