Foi só alguns dias depois do fatal piquenique em Paquetá que eles dois apareceram. A maré trouxe primeiro o corpo da moça, logo identificado por causa do maiô de sarongue, todo de flores amarelas. O dele apareceu mais tarde, a uns cem metros de distância. Coitado, nem então ficaram juntos. Identificar não o identificaram propriamente, que não dava para isso, tal o estrago feito pelos peixes. Mas se quase de par com o corpo dela outro corpo aparecia, tinha que ser o dele, pois não? No fim de contas, não se dera pela falta de mais ninguém, só aquele casal.

*

A primeira vez que a viu foi no baile da primavera, no seu clube de subúrbio. Estavam elegendo a rainha do mês de maio, e ela corria na frente do páreo. Afinal, se rainha não saiu, por causa de uma dúzia de votos, saiu contudo princesa, teve o seu trono de veludo ao lado do trono maior, também ganhou brinde e também foi coroada. Ele teve a honra de ser o seu par, na hora da valsa real, que foi, como é sempre, o Danúbio Azul. E quando a sentiu nos braços, apertou-a como coisa sua e lhe disse no ouvido:

― Pode você só ter chegado a princesa, e nem isso carecia de ser: para mim há de ser sempre uma rainha...

Ela porém o afastou de si, não zangada, mas dengosa, se defendendo: 

― Não atraca, seu pirata, que isto aqui não é cais do porto.

Talvez falasse assim linguagem marítima, em homenagem à tarda que ele vestia: a túnica cor de sangue, a calça branca engomada, e a casquete matadora, posta de lado no cabelo repartido, com as fitinhas pretas tremulando no ar, aos rodopios da valsa. E nem o par da rainha, o presidente do clube, tinha um décimo sequer do airoso aprumo do par da princesa, ― tudo de acordo com a ordenança militar: barriga para dentro, peito saliente e olhar terrível.

*

Com tudo isso, não foi dessa vez que a começou a amar e seu cativo se tornou, como se a ela pertencesse de tinta e papel.

Foi no outro dia em que estava sentado à toa no banco da praça e viu descendo do bonde um par de sapatos desses que chamam de balé, e umas pernas de garrafa, e o joelho redondo, e a barra da saia estampada. Só então levantou os olhos, viu-lhe a face e o lenço do cabelo, viu os olhos e viu-lhe os brincos de arrecadas à portuguesa. E a boca tão pintada que parecia uma flor de papel pregada no meio do rosto, e o pescoço delgado saindo do laço da gola, e a cinturinha fina apertada no cinto de oleado. Por fim, deixou de a olhar assim, pedaço por pedaço, reconhecendo aquela cintura onde pusera a mão, os olhos e o cabelo: fitou-a em conjunto e logo recordou quem era. Quem seria senão a princesa do mês de maio?

E ao reconhecê-la assim, foi como um cachorro de rua que encontra a dona e não quer mais se apartar dela. Chegou para perto e se entregou. Disse tudo, ofereceu tudo. Princesa tão perigosa há muitos anos não havia. Por ela diz que dois malandros já se pegaram a navalha, um chofer se suicidou com formicida, um pai de família largou a família, três noivos deixaram as noivas, cinco estudantes sentaram praça e sete funcionários públicos deram desfalque.

― E eu ― que poderá fazer o triste de mim, princesa, que sou apenas um pobre naval apaixonado? Me matar não posso, porque do vosso amor já morri. Matar outros ― mas antes que eu deles chegue perto, sei que o vosso olhar os matou. Sentar praça já sentei; dar desfalque ― como seria, se a mim não confiam nada? Largar família ― ai de mim princesa, que me criei enjeitado, nunca tive esposa ou noiva; vós é que sereis minha gente e meus amores, pai e mãe que nunca tive, filhos, sobrinhos e netos! Princesa, deixe que eu amarre o cordãozinho do vosso sapato. Deixe que eu deite no chão para você pisar. Maltrata, princesa, maltrata, que estás maltratando o que é teu!

Assim falava o naval apaixonado. A princesa, se o escutava, fingia que estava longe. E a bem dizer fez tudo que ele mandava e depois fez muito mais: pisou, judiou, escarneceu, desprezou ― embora só moralmente, com o sorriso desdenhoso e a palavra de pouco caso dita na ponta do beiço.

Como seu, só o aceitava para maltratar, com outros saía, com outros dançava. Ele porém não a largava, sempre a acompanhando, sempre a alguns passos no seu rastro e se não o comparo com uma sombra é porque sombra não sofre e o pobre sofria muito.

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Afinal sucedeu o piquenique em Paquetá. Nem uma vez ela o olhou durante a hora e meia da barca. Nem uma vez lhe falou entre embarque e desembarque, e o passeio de bicicleta e depois o banho de mar. Mas foi na hora do banho de mar que ele sumiu de repente e voltou minutos depois remando numa canoa. Passou bordejando por ela que boiava na flor d’água como uma alga amarela no seu maiô de cetim. Como se brincasse ofereceu carona. E ela, num capricho, aceitou. Quase virou o bote ao subir nele. Ele ficou na popa onde estava e não a tocou sequer, procurando ajudar. Depois puxou pelo remo, e a pequena embarcação se escondeu por trás da pedra da Moreninha.

O que se passou naquele barco só deus saberá. Os companheiros foram dar pela falta dos dois quando desceram na barca da Cantareira. E assim mesmo pensaram que o par tinha se sumido de propósito no meio da multidão.

O homem do restaurante em Paquetá é que estranhou o seu bote aparecer emborcado. E como se disse no princípio, só depois de vários dias é que os peixes e a maré devolveram os dois banhistas.

rachel-de-queiroz
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