É isto, companheiros: andei por fora menos de dois meses e se fosse espiritista diria que andei pagando o mal cometido em várias outras encarnações passadas, note-se que havia de ter sido mal mesmo péssimo, para exigir pagamento tão duro. É incrível o que o mundo pode fazer com a gente durante o curto espaço de cinquenta dias.

E o curioso é que, enquanto somos arrastados por esse particular furacão de misérias, do lado de fora tudo continua devagar e com bom tempo, as coisas sucedendo no seu prazo adequado, no mesmo ritmo lento a que estão acostumadas, os bebês nascendo em nove meses, os cachorrinhos em oito semanas, o dia e a noite cada um atrás do outro, tal como convém.

Cheguei em casa e o meu coqueiro anão tinha aberto duas palmas, o pé de jambo vermelho que cresce a bem dizer a olhos vistos aumentara cerca de palmo e meio, e as alfaces do canteiro que deixei enfolhando já tinham murchado e morrido. O resto não sofrera alteração visível ― nem sequer haviam desbotado as cores nas carapuças de croché dos meninos que jogam futebol na rua. Jurema, a moça bonita com tranças pela cintura, continua a tomar banho de mar com o lindo cabelo solto, igual a dantes. Nem sequer se apagou a saudade da minha amiguinha Ione que aos nove anos morreu de uma dor de lado, e de quem me despedi chorando, deitadinha que ela estava no seu caixão cheio de cravos e camélias.

Dizem contudo que na nossa ausência houve aqui muito movimento, pois além das tropelias do fantasma numa casa da rua Cleto Campelo, houve também uma guerra de “gângsteres” que transformaram a Ilha numa pura Chicago ― Só faltava mesmo o pessoal falar em inglês. Morreram e mataram, atiraram de automóveis, deram “passeios” nas vítimas, vinham do Rio carregamentos especiais de detetives infernalíssimos, tinha uma loura e várias morenas envolvidas nos grupos beligerantes; o hospital e a delegacia viviam de prontidão e já ninguém poderia dizer sem injustiça que o pessoal da assistência ou da polícia ganha à toa o dinheiro dos contribuintes.

Ao chegarmos, contudo, estava a guerra nos seus últimos fogos e a Ilha-Chicago é para nós apenas uma lenda como muitas. Já se pode andar por rua ou por praia a qualquer hora do dia ou da noite, sem perigo de encontrar um automóvel misterioso, cuspindo bala. Já se pode jogar no bicho com qualquer banqueiro, sem perigo de morrer por fogo ou por ferro frio.

No mais, todas as rosas vermelhas da Ilha estão desabrochadas, até parece revolução: pois as outras rosas, brancas, amarelas e as cor de rosa propriamente ditas, ou fizeram greve e subitamente se transformaram em violetas: o fato é que não se vê nenhuma.

No que diz respeito ao abastecimento, não tem faltado carne nem leite, o que é um consolo para a falta d’água que prossegue sem alteração importante. O peixe nas praias também se consegue ― mormente quem é amigo dos pescadores, o que acontece nesta humilde casa; e assim, nesta mesa igualmente humilde, não tem escasseado o peixe-porco, o robalo, o linguado, a corvina e a tainha gorda, feitos de forno ou no leite de coco.

Sim, a vida continua. Põe a mesa e tira a mesa, sai e volta do trabalho ― igual, exigente, requerendo a mesma boa vontade e a mesma coragem de sempre para seguir adiante. Que sendo este mundo tão grande como é, tem lugar para tudo, menos para corações feridos. Peixes e cachorros, marinheiros e literatos, plantas, passarinhos, pintores de aquarelas, bailarinas e motorneiros, ninguém aprecia corações feridos. E assim, quem tiver ferido o seu, esconda-o direitinho num dos quatro cantos do peito e vá tratar da sua vida como se nada houvera; só desse modo continuará ocupando o lugar que tão penosamente obteve durante trinta e tantos anos de luta no meio dos seus semelhantes. Deixe estar que depois de morto terá muito tempo para se consumir, que a eternidade, afinal, ou dê no nada ou dê na imortalidade, só começa mesmo debaixo do chão.

rachel-de-queiroz
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