Confesso que foi agora a primeira vez em que ouvi falar em marimbus. Confesso mais que corri ao dicionário — ao nosso Aurélio — e lá está o verbete “marimbu: terra embrejada à margem dos rios”. Aliás, não serão os marimbus, esses pântanos fechados de matagal à margem dos grandes rios baianos, a primeira nem a única novidade que nos traz o novo e excelente romance de Herberto Sales.
Há qualquer coisa de fortemente amazônico naquele mato cerrado do sul da Bahia; negro, misterioso, intenso, primitivo, que Herberto conseguiu captar com perfurante acuidade, esse ouvido especial do artista verdadeiro que não faz reportagem nem deformação romanesca, mas conta a sua versão pessoal da verdade, muito mais real que o simples depoimento, porque muito mais intensa.
As gentes que vivem naqueles desertos verdes e úmidos são uma espécie de subumanidade — e nelas também há um estranho parentesco com os homens que povoam as soledades amazônicas; — é a malária, é a cultura improvisada e mesquinha, quase devorada pelo mato forte, é o abandono, a miséria extrema, aquela distância perdida da cidade e do dinheiro, a luta diária e desigual com as insolências da natureza bruta — seja fera no mato, seja cobra gigante dentro d’água, seja a moléstia ou a tristeza; — para não falar no mal pior de todos que é a exploração desalmada do patrão, homem que não distingue bem o seu cabra dos marimbus dos demais bichos que se criam por lá, e dá quase tanta atenção a um como aos outros.
O livro conta uma história simples, quase linear — a viagem que faz o herói à região do “além dos marimbus”, para comprar uma fazenda. Com esse enredo singelo, toda a força do romance se concentra na terra e na gente, e na beleza de uma forma austera, segura. E note-se que as tentações para os excessos não deviam ser poucas, com aquele cenário que até pode parecer “exótico” a nós brasileiros de outros quadrantes, tão diverso é ele de tudo que conhecemos e habitamos.
Mas Herberto é que não se deixa embriagar pela força daquela natureza; foge resolutamente do oratório, foge sim de qualquer suspeita de condoreiro, ele, o bom baiano. Faz um livro contido, seguro, sereno; parece que a gente está vendo um cavalo bom e bem montado, se entendem o que quero dizer. Não espinoteia, não corcova, não faz brilharecos de alta escola, só para espantar. Aquela dignidade do que é bonito no seu próprio natural.
Outra coisa a notar no livro é a sua unidade. É cabalmente inteiriço, feito de uma peça única, sim, sem costurados visíveis. Não se transvia por histórias secundárias, não sai atrás de pitoresco nem engraçado. Mesmo quando está dentro da zona relativamente mais civilizada, junto com o padre e o sírio e os nacionais diversos, poderia perder-se no interesse de tratar retratos de tipos — ah, o tipo, a caricatura, o retrato, a silhueta, perdição de tanto romancista promissor! Mas nessas também não cai mestre Herberto. Quem tem de aparecer aparece, funciona, chamado só pela mecânica da narrativa — diz a sua deixa e pronto. Não fica fazendo comício nem demonstrações de folclore. É pessoa mesmo, não apenas personagem.
*
Mas torno a falar que, por mais importante que seja a humanidade herbertiana, o marimbu mesmo é que é a força maior. O pântano verde, com seus bichos e seus mistérios, a terra instável, o calor, o medo. Parece que o marimbu se eleva até nós, nos abraça e nos confunde com sua mágica aterradora; durante a leitura acontece muitas vezes a gente parar, num meio medo — medo de ficar presa ali, na solidão semiaquática, junto com aquela gente que parece já ter renunciado à grande parte dos seus direitos humanos — ou antes, que parece nunca ter tido ideia do que é direito, quanto mais de os possuir.