A cólera do nosso amigo Conde, furioso contra a falta de alimento manuscrito para os seus arquivos implacáveis, fez-me lembrar, outro dia, que se vai realmente acabando o famoso “pegar da pena” ― o gesto simbólico por excelência do nosso ofício. O homem moderno, mormente o escritor, está ficando analfabeto no sentido mais literal da palavra: desaprendeu de escrever à mão e hoje mal ferra o nome. A sua própria inteligência parece que só funciona direito quando ajudado pela máquina; quando se vê na contingência de escrever à mão sente-se como o peixe fora da água, ou como bicho de terra atirado ao mar. O pensamento emperra, a velocidade da pena não acompanha a da cabeça, os dedos se fatigam, dão-lhe cãibras, e o pobre diabo do escriba, viciado com a inigualável ajuda da máquina, só tem vontade é de chorar, ante a obrigação de dar conta do trabalho e a quase impossibilidade de produzir ao menos dois magros dedos de prosa.

Nos primeiros tempos a dificuldade fora o oposto. A gente começa a escrever à máquina porque vê os outros fazerem assim, porque na redação nos reservam uma máquina e o principiante se sente no dever de usá-la, igual aos colegas. Mas sabe Deus o que lhe custam esses começos, mesmo que já tenha o seu curso de datilógrafo: é que o trabalho mecânico distrai o escrevente do trabalho mental e, ou bem ele pensa nas teclas, no papel e nos espaços, ou bem pensa no sentido da frase que está querendo dizer. Aos poucos, com surpresa, é que vai verificando quanto a escrita se tornou automática, quase um reflexo; quanto lhe facilita o trabalho e aumenta a capacidade de produção. E por fim chega à fase em que estranha, ou mesmo lhe parece impossível, qualquer tentativa de escrever à mão, igual ao automobilista quando um prego do carro o obriga a caminhar alguns quilômetros a pé.

Aliás não é esse o estágio derradeiro do escritor-datilógrafo. Ainda lhe falta alcançar a última especialização, por sinal mais incômoda: quando a gente atinge o ponto em que só sabe escrever na sua máquina. Fica o diabo da máquina como um prolongamento do nosso corpo, espécie de nossa metade pensante e, embora feita de ferro, nosso colaborador a meias. E aos poucos aquela máquina, a nossa máquina, deixa de ser máquina propriamente dita, vira-se numa espécie de piano e nós no pianista, intérpretes do que o piano-escrevente queira dizer. Cria-se uma afinação especial entre ela e nós, e toda vez que temos de mandar a máquina para a limpeza é um martírio, porque ela vem mudada, batendo com som diferente, sem os defeitos do costume, que já corrigíamos automaticamente e que agora nos fazem falta. E levam-se dias para reajustar o automatismo do toque às novas condições do instrumento ― e imaginai quão dedicado é esse reajustamento entre nós e aquilo que já não é um objeto, pois que está intimamente ligado ao nosso trabalho intelectual e ao que vulgarmente se dá o nome de inspiração.

Minha velha Underwood portátil, por exemplo, que está comigo há mais de dez anos, nem sei mais onde começa a autoria dela, na nossa colaboração, e onde acaba a minha. Outra que me acompanhou por muito tempo foi uma minúscula Corona, presente de um amigo da família à jovem literata que se ensaiava nos jornais da província. Recuperei há pouco essa maquininha, da qual tinha tão boas recordações de intimidade, na qual copiara uma, duas, três vezes os meus primeiros livros, batucando horas seguidas, na calma da noite no sítio, a janela aberta para o laranjal e por ela entrando o cheiro das flores e do mato e a negra multidão dos insetos noturnos que pareciam brotar da terra, como formigas de asas. Pois qual não foi a minha mágoa, depois de tantos anos de separação, abrir a velha Corona, meter-lhe o papel ― e estranhar a máquina como quem estranha um irmão perdido em menino. Parece que os meus dedos cresceram, ou que as teclas diminuíram, nem sei. Os sinais mudaram de lugar, a pontuação enlouqueceu; e até as pequenas astúcias da maquininha, que lhe compensavam o tamanho diminuto, ― como por exemplo uma terceira posição de levantar o teclado, acima das maiúsculas ― não vinha mais à memória dos dedos e era preciso parar, interromper a todo instante a nossa cantiga. Uma dor de coração.

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Este assunto de escritores e máquinas não teria importância para o leitor se não fosse a moralidade que dele podemos tirar. E a moral é esta:

É um erro procurar-se a facilidade das coisas mecânicas que só nos pode levar ao abandono das coisas naturais. De invenção em invenção chegamos à incapacidade quase total e já não temos pernas nem braços, nem olhos, nem ouvidos que por si sós nos ajudem. A cozinheira, não acende fogo nem corta carne, o confeiteiro não bate ovos, a costureira não enfia a agulha, o escritor não pega da pena, o lavrador não cava com a enxada, a lavadeira não esfrega roupa, o matemático não faz contas, o caixa não confere o troco, o avicultor não deita as galinhas, até mães não embalam os filhos, pois já se inventou berço mecânico para embalar e cantar. Tudo são máquinas. A máquina telefone namora por nós, enquanto a máquina rádio canta as cantigas das nossas velhas serenatas.

E isto não pode estar certo. Ferro não é carne, é frio e duro, não ama nem perdoa. Quem só trabalha ajudado por instrumentos fabricados, pode a princípio ser senhor desses instrumentos, mas acaba feito escravo deles. Quem vive pela máquina, morrerá pela máquina. Ou pelo menos à míngua da máquina, quando essa máquina algum dia lhe faltar.

rachel-de-queiroz
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