Problema difícil de decidir entre os homens é saber qual o maior valor de uma coisa por suas mãos criada — seja livro, estátua, casa ou cidade: se é o próprio valor intrínseco da coisa em questão, ou se é a sua legenda. Se ela vale por si, independente do que a seu respeito dizem artistas e sábios, ou se vale pela importância que lhe emprestam os homens de pensamento e de arte, criando ao redor da simples forma de pedra, de figura na tela ou do descrito no papel, aquela aureola dourada a exigir reverência e amor da parte do homem comum. Paris seria a mesma Paris, despojada do que há um milênio têm escrito, pintado e esculpido, em louvor da velha Lutécia, os seus pensadores e os seus artistas? E que seria Tróia sem Homero, senão um amontoado de pedras onde bárbaros ferozes se entremataram? E Jerusalém, e Babilônia e Cartago. E a própria Atenas, a própria Roma. São todas elas, no culto dos homens, mais criação das vozes que as cantaram, do que das mãos que levantaram as casas, ou as gentes que as povoaram.

Aqui no Brasil, por exemplo: precisou aparecer um Euclides da Cunha para transformar o sertanejo desprezado ou desconhecido, numa figura de relevo clássico e para dar ao drama atormentado dos sertões um eco que talvez já se possa dizer mundial.

O velho nordeste açucareiro, morto, esquecido, que dantes se afundava de todo no empobrecimento e na ruína, depois que foi escrita Casa grande & senzala, como que brotou miraculosamente com força nova de dentro das taperas dos engenhos e das casas grandes, e é hoje uma realidade presente aos olhos de todos, mais vivo, mais imortal, depois de transportado ao papel do que no tempo em que se erguia materialmente, na pedra, na madeira de lei e nas obras mecânicas.

A Minas, a grande Minas histórica do ouro e da Inconfidência, tem-lhe feito falta um grande escritor que produza a seu respeito a obra de levantamento igual ao empreendido pelo Cunha ou pelo Freyre. Verdade é que com a Inconfidência já nos sentimos a bem dizer remidos depois que Portinari pintou nos seus murais a história do Tiradentes. E os museus do Ouro e a Inconfidência, verdadeiras obras de arte que são, em vez de simples repositório de lembranças, representam melhor a coisa que já se fez no Brasil em matéria de ressurreição histórica de uma época. Existe ainda o famoso e raríssimo Guia de Ouro Preto, de Manuel Bandeira — mas o poeta cingiu-se à cidade da Vila Rica, — e assim, pois, Minas continua reclamando a seu monumento escrito que ombreie com Os sertões ou com a Casa grande & senzala.

A cidade do Rio de Janeiro era outra que vivia mais pela tradição oral, sem contar com um livro que fizesse um inventário completo e inteligente dos seus monumentos, das suas singularidades e belezas, da sua história passada e presente. Tinha em verdade os seus historiadores, os seus Vieira Fazenda e, recentemente, mestre Vivaldo Coaracy traçou com mão veraz e cuidadosa o roteiro do que aqui ocorreu durante o século XVII. Mas essas e outras, embora de mérito, eram obras limitadas a determinado período ou, quando mais ambiciosas, o de que careciam era do mérito e ficavam limitadas pelas próprias limitações dos seus autores. Hoje, porém, já temos esse livro que nos faltava: é a grande obra de Gastão Cruls o Aparência do Rio de Janeiro, cujo título saboroso foi inspirado por um mapa seiscentista da Baía de Guanabara. É um retrato amoroso e fiel da cidade, acompanhando-a desde o nascimento — filha que ela foi do belo moço Estácio de Sá, morto por fundá-la, e cuja lápide funerária serviu de marco inicial da metrópole futura e acompanha-a até os dias de hoje, através de colônia, capital do vice-reinado, do reinado, do império e da república, sempre com o mesmo carinho minucioso, com o mesmo olho seguro de artista e de erudito sem perder nada mais importante ou mais característico de cada época estudada. É livro que abre novas perspectivas para os amantes da cidade, que até hoje só lhe conheciam certas tradições por ouvir dizer, pois nem todos, por mais interessados, têm tempo ou facilidades para folhearem alfarrábios ou estudarem obras antigas e esgotadas.

Agora não me admira que muita gente passe a percorrer o Rio, procurando-lhe os velhos monumentos, igrejas e casas nobres, ou os monumentos modernos dos mestres, arquitetos contemporâneos, conduzindo consigo, não um miserável guia da capital, mas este incomparável Aparência do Rio de Janeiro que dá tudo que se quiser saber, localização e história, poesia e romance de cada pedra e de cada marco da cidade.

Diz Gastão, quase no final da obra, que o seu livro não foi feito com pretensões a Baedecker. Claro — porque excede de muito, em todos os planos, quaisquer limites de um Baedecker. Quem o lê, sente tresdobrado dentro de si o fascínio maravilhoso desta cidade que a gente pode querer deixar de amar, que a gente pode mesmo renegar em momentos de nostalgia provinciana, mas de cujo feitiço não se livra, de modo nenhum. Feitiço que Gastão Cruls, filho do Rio de Janeiro, nascido no próprio berço da cidade (aquele morro do Castelo que foi derrubado, despido da sua forma terrena talvez para ter vida mais importante como símbolo), criado dentro das vetustas paredes da igreja inacabada dos jesuítas, sente mais do que ninguém, ama melhor do que nenhum outro como se estas pedras, estes morros, estes velhos templos e casarões, estes arranha-céus, este progresso e este asfalto estivessem transubstanciados na sua carne e no seu sangue de carioca.

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