Fala-se muito em industrialização do Nordeste, a fim de se aproveitar o excelente material humano que se perde numa obstinação de agricultura para a qual a terra é tão pouco propícia. Talvez seja essa, realmente, a solução, mas enquanto a industrialização não vem, é uma pena que diariamente se vá perdendo cada vez mais a tradição do artesanato, porta de saída para muita atividade, boa perspectiva de renda para esta região de mão-de-obra barata. Li num livro que, na China moderna, há um organismo estatal que só disso cuida: promover a organização, o aproveitamento racional, da atividade artesanal do povo. Criação de mercados, escolas de artífices, ressurreição de velhas técnicas, fornecimento de matéria-prima, etc.

Cuidado idêntico mereceria o nordestino — com especialidade o cearense que é, por nascimento, um artesão. Não há pequena comunidade do interior que não conte no seu meio com vários daqueles chamados “curiosos”, sujeitos que, com ferramentas elementares, conseguem produzir objetos de utilidade ou arte de fino lavor.

Sei de uns meninos aqui vizinhos, que, sem aprendizado, sem oficina, deram para fabricar violões. Eles mesmos cortam a madeira no mato, eles mesmos a lavram, a serram. Os violões que fazem, a poder de paciência e talento improvisador, são afamados na região, pelo bom som que produzem, pelo acabamento delicado. Ontem eu me maravilhava com um fuso de prensa de mandioca, todo feito a serrote, enxó e grosa — e que perfeição de espiral, que acabamento impecável! E o homem que faz esses fusos nunca viu um torno de madeira! Outros fazem trabalhos em couro, essas roupas de vaqueiros macias como camurça, enfeitadas com desenhos de ponteira, bordados e aplicações. Ou fazem selas, arreios, chicotes, bolsas. As selas de gualdrapas bordadas e complexo sistema de acolchoado; as rédeas de trança, os chicotes de cabo esculpido, ou revestido. Os mecânicos de automóvel, então, é o que mais se vê. E não só montam e desmontam um carro, como improvisam peças, fabricam algumas, inteiramente. E a habilidade com que esses danados descobrem as manhas de um motor de explosão!

Por estas redondezas é famoso um rapaz que sabe tirar do prego as locomotivas Diesel da RVC.

Quando a máquina entra em pane e os maquinistas não conseguem encontrar o enguiço, manda-se chamar o Pedrinho (o nome todo é Pedro Alves Filho), e o moço mexe daqui, dali, assopra, tira parafusos, aperta — e quando se da fé a máquina anda. O sonho dele é ser maquinista da estrada — mas tão difíceis são os caminhos burocráticos, tão inacessíveis os bons pistolões — a quem falar, como conseguir uma oportunidade? — e é uma bela vocação que se perde. Todo o mundo deste arredor, inclusive os maquinistas da RVC, não me deixa mentir.

A velha arte dos lavores femininos — renda de almofada, labirinto, ponto de marca, bordado cheio e crivo — também vai-se perdendo. Se não desaparece de todo é porque sempre há um mercado, mesquinho embora, para os produtos das rendeiras. Existe mesmo um comércio regular de “rendas e bordados do Ceará” explorado em Fortaleza e no Rio. Mas pagam-se preços tão baixos às rendeiras que as moças se recusam ao penoso, lento aprendizado dessa arte delicada, e só as velhas ainda se dedicam à renda e ao labirinto. Os intermediários, em geral, fornecem a linha às rendeiras e mais o pano e o desenho às bordadeiras, e pagam só a mão-de-obra, mas o preço é tão vil que, mesmo nesta terra de salários baixíssimos, elas desanimam de continuar no ofício. Preferem ficar em casa sem fazer nada ou se dedicam aos trabalhos mais brutos da lavoura; ou, ainda, fogem para a cidade, onde vão ser operárias de fábrica e empregadas domésticas.

Outra arte muito antiga, a de tecer redes em teares domésticos, está praticamente desaparecida. Na Serra Grande, no norte do estado, é que ainda existem algumas tecelãs, poucas e desanimadas. Ano passado ganhei duas redes dessas: os panos estreitos são unidos com ponto de bordado, as mamucabas são de caseado, as varandas larguíssimas, do crochê mais miúdo — parece obra de outro século; são as melhores redes do Mundo, na perfeição do deitar, na beleza da confecção, como jamais rede nenhuma de fábrica consegue chegar perto. No entanto, dizem-me os moradores daquela zona que, morrendo as velhas tecelãs, que ainda hoje trabalham “mais pelo vício” que pelo proveito, a arte das redeiras vai morrer também.

E há as que se dedicam à loiça de barro, cujos melhores exemplares nos vêm igualmente do norte do estado. Aqui não se usa torno de oleiro: toda a loiça é feita à mão, “levantada” em roletes de barro, como faziam os índios. E é mil vezes mais bonita e delicada que esse barro comercial, feito em torno, fofo e áspero. É mais compacta, mais fina, leva pinturas ingênuas e coloridas, ou é polida a caroço de mucunã, ficando com um brilho de porcelana preta.

Os trabalhos de palha são também muito originais e bonitos; quanto ao acabamento, não perdem nada para aqueles do mercado de Florença.

O Cariri, esse, já não é um viveiro de artesãos, mas de artistas. Armeiros, cuteleiros — Os finos punhais do Cariri com cabos de marfim e ouro, obras de arte verdadeiras. E, falando em ouro, não esqueçamos os ourives tanto do Cariri como de toda a parte desta região — os brincos, os cordões, os trancelins, os encastoados, como só os vi parecidos nos ourives da velha cidade de Goiás.

Se houvesse uma instituição que procurasse ordenar, dar aproveitamento racional ao trabalho do artesão — dar-lhe estímulo, modelos de mais fácil rentabilidade, fregueses. Principalmente fregueses — quero dizer, mercado honesto. Quanta coisa bonita se teria para vender aos turistas, em lugar de apenas aqueles eternos horrores em asas de borboleta com que se tiram alguns dólares aos marinheiros americanos, nas lojas de curiosidades do Rio!

Talvez a Ancar, que em tantas coisas mete o seu nariz benfazejo, talvez já se tenha interessado por esses problemas do artesanato. E que outros, além da Ancar, se interessem. O que não se pode deixar é tanta riqueza, tanto talento espontâneo se perder, tanta bonita tradição ser abandonada.

rachel-de-queiroz
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