No tempo de Salvador Correia de Sá, chamado Salvador o Velho, governador do Rio de Janeiro e dono desta sua ilha que por isso se ficou chamando ilha do Governador, — mal saída que estava ela das mãos dos bugres, começou-se a cultivar aqui o que então se cultivava no Brasil inteiro: a cana. Canaviais e engenhos, escravaria, senzalas, indiada, ainda hoje se encontram vestígios arruinados disso tudo. Fazia-se açúcar mascavo, rapadura, aguardente.

Depois foram-se embora os Correia de Sá, e a ilha ficou entre o rei, o mosteiro de S. Bento e alguns fidalgos ou homens ricos; e mais se ampliou a lavoura, cada morador ou agregado plantando o seu pomar de fruta, cultivando sua roça de milho, mandioca, feijão, arroz, até fumo, até café. Nas ruínas da casa grande do Barão de Capanema, senhor de grandes terras nesta ilha, justamente o que ainda resta inteiro é um antigo terreiro de café.

A ilha chegou a ser uma espécie de horta e jardim da cidade, mandando diariamente para lá barcas e barcas carregadas de cereal e hortaliça.

Aos poucos, entretanto, à força de compras, de inventários perdidos, de GRILOS, de doações, foram as terras da ilha mudando de donos; os lavradores se viram desapossados, e os grandes proprietários, as grandes companhias imobiliárias, por compra ou por astúcia, tomaram conta de tudo. Abandonaram-se os roçados, que viraram capões bravios, derrubou-se o arvoredo de fruteiras para fazer lenha. Onde houve tanto verde e tanta fartura reina hoje uma nudez de caatinga agreste. Onde houve tanto milho e tanta couve, hoje em dia só se cultiva pedra.

Isso mesmo, pedra. Parece que a ilha toda é uma pedreira sem fim, ora os rochedos aflorando no chão como abrolhos no mar, ora mal encobertos por uma camada rala de capim ou de limo.

Lavoura bruta essa, feita com dinamite e a golpes de marreta. Até parece terra de degredo, com os homens penando em trabalhos forçados. Por toda a parte onde a gente ande, só avista rochedos escalavrados, só se ouvem os tiros das minas trovejando, e o troc-tloc contínuo do ferro no granito. Por isso dizem aqui que a pedra da ilha é o pão do pobre.

Pode ser pão; mas também é morte. Porque em todo ofício em que a gente em vez de amansar, maltrata a natureza, tem risco certo de morte ou desgraça. Quem ajuda a natureza, — quem planta, quem cria, quem com o suor do seu rosto traz aumento ao mundo, — esse morre de velho descansado. Mas quem enfrenta água, céu ou chão, quem navega no mar, quem anda voando como os de agora, que cava minas e principalmente quem tiroteia com explosivo a terra nossa mãe, como se fosse uma inimiga — todos esses pagam.

Ontem, por exemplo, uma das nossas pedreiras tirou vingança dura. Não se sabe por que malícia escondeu-se uma mina numa entranha de pedra; o fogo dormiu no estopim a noite inteira como se em vez de dinamite houvesse ali uma carga de água. E só de manhã, quando os homens chegaram ao trabalho, e se espalharam como formigas retalhando a laje, a mina encoberta estourou, quebrando perna, arrancando olho, fraturando costela, braço, crânio; parecia até arte de alemão. Aliás houve quem falasse em alemão. Mas acho que é tolice, os alemães não estão mais para essas.

A desgraça que para cada família traz a perda desses braços, dessas pernas, desses tampos de cabeça, desse olho cego, ninguém pode calcular. Se bem que a maioria dos feridos se registre como rapaz solteiro. Curioso, hoje em dia, só dá homem solteiro. Os homens todos solteiros, as mulheres todas casadas; sim, porque elas é que têm os filhos e quem tem filho é casado; eles, como não têm obrigação, falam, sempre, que são solteiros, porque não passaram pelo juiz ou pelo padre e não pensam no bando de gibi chorão que deixaram por aí.

(Quem duvidar do que estou dizendo consulte as fichas de inscrição nos ambulatórios, ou em qualquer outro serviço social. 90% dos homens são solteiros e 90% das mulheres são casadas. O que é feito dos homens casados e das mulheres solteiras ninguém sabe).

Mas solteiros ou não, deles é que vinha o sustento das mães e da criançada que é muita, isso eu juro. E agora como vai ser? Não se fala em indenização, e ademais, quando é que uns poucos de cruzeiros de inflação podem pagar a carne e o sangue de um homem? Será que quinhentos cruzeiros pagam o preço dum braço vivo e trabalhador ou pagam o preço de uma perna que caminhava no chão e carregava seu dono?

Ora pois não digo que a natureza não tenha o direito de se revoltar de vez em quando e cobrar o mal pelo mal. Mas por que há de sofrer o justo pelo pecador? Por que há de pagar o pobre a ambição do rico? Já não basta a guerra em que houve 55 milhões de baixas, entre pobres e soldados rasos? Que os generais e os governantes só morreram de acidente ou doença. De guerra, mesmo, nenhum. Pois já não basta a guerra?

Os pobres escavacam a pedra, com tiro e ferro, é verdade. Mas quem se goza disso? Eles só moram em barracos de sopapo ou de lata, cobertos de zinco ou sapê; algum raro mora debaixo de telha, mas duvido que um só deles tenha em casa obra de pedra do tamanho da mão. Para os ricos vai a pedra — toda para os grandes e os poderosos. Para que se tranquem mais a seguro, que rodem mais no macio, que tenham casa não só para si e os filhos, mas para netos e bisnetos. Então, se tivesse alguém justo mandando nessas coisas que acontecem, por que não fazer o castigo cair em quem merece? Ficassem quietas as pedras nas pedreiras, enquanto os operários cativos lidam com elas; estourassem depois, quando já estivessem a serviço dos ricos. Estourassem nos alicerces dos palacetes, nos paralelepípedos da rua ao peso dos automóveis, no lajeado dos jardins, nos ornatos de cantaria.

Mas qual, é inútil. Até pedra sabe quem é a parte fraca. Aí, até pedra conhece.

rachel-de-queiroz
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