Outro dia, num programa de debates na televisão, assisti a uma discussão singular: duas senhoras, por sinal que inteligentíssimas, analisavam com um senhor juiz de menores os problemas de proteção aos animais, postos em foco pelo movimento da renovação que ora agita a SUIPA (Sociedade União Internacional Protetora de Animais) ― do qual movimento ambas as senhoras são líderes. E digo que o debate foi curioso, pois mal as duas senhoras fizeram o seu pequeno discurso explanatório, o senhor juiz saiu logo ― com licença da palavra ― de sola, e disse que esse negócio de proteção era tafularia, que não tem importância nem merece cuidado ― pois só o que nos importa é o problema da assistência à infância. Os termos eram mais corteses, mas a essência do dito era isto mesmo.

Ao primeiro impacto da alegação, feita assim à queima-roupa, a assistência ao programa quero crer que ficou impressionada. Realmente, com tanta criança desamparada, como pensar em outros viventes? Mas, passado o choque da declaração sensacional, a gente se recolhe e reflete, e vê que o meritíssimo errou ― ou, quando muito, exagera. Pois acontece que o organismo social é infinitamente complexo. E tem que ser devidamente cuidado e policiado no seu todo e nas suas partes mais ínfimas, sob pena de corrupção e contaminação geral. A gente não pode descuidar de uma parte qualquer do corpo, sob a alegação de que o coração, o fígado ou o cérebro, órgãos nobres, são os únicos merecedores do nosso interesse. Mesmo porque isso não é verdade; até uma unha encravada pode matar um homem. Não precisa o coração ser afetado ― ou antes, a unha infeccionada pode levar o veneno ao coração.

Depois, é bom lembrar-se a gente de que, tanto a caridade como a crueldade, além de virtude e vício, respectivamente, são também um hábito, um costume da alma. As pessoas se acostumam a ver fazer e a praticarem elas próprias o mal, assim como se acostumam a socorrer o próximo ― quase automaticamente, tudo por hábito. Ou se tem bons costumes, bons sentimentos, ou não se os têm: ― ninguém pode abrir compartimentos estanques no coração: daqui para cá eu tenho pena, daqui para lá sou implacável. Menino até cinco anos merece meu dó. Cachorro não merece. Velho, merecerá? E, nesse caso, se começamos nas subdivisões, é um nunca acabar: e negro, merece? E judeu? E caboclo? Quem tem direito a compaixão maior: uma criança branca ou uma mulatinha? Mãe solteira tem direito ao mesmo interesse que mãe casada? E católico, merece o mesmo que pagão?

Quem é capaz de maltratar um bicho, de ver morrendo de frio e fome, na rua, um gatinho abandonado, de assistir, sem um estremecimento de coração, ao calvário dos pobres cavalinhos dos parques infantis, quem testemunha sem dó a desgraçada sina dos jumentinhos de carga no Nordeste, ― quem é capaz disso, já está com o coração preparado, suficientemente endurecido para ver passar fome uma criança, para testemunhar sem piedade o drama da infância abandonada nas ruas do Rio de Janeiro. Afinal, carne de bicho ou de gente, fome de bicho ou de gente, tudo é carne, tudo são entranhas, tudo dói...

*

Outro equívoco em que, data venia, parece-me que incidiu o meritíssimo, é o seguinte: a gente não pode fazer exclusão do menor em benefício do maior ― tem é que pôr maior e menor cada qual no seu lugar respectivo. Nesse negócio de crueldade e assistência a desvalidos, o menino, naturalmente, é muitíssimo mais importante do que o bicho, mas, tanto o menino como o bicho têm o seu lugar na escala zoológica e, ― por que não? ― na escala social. Socorra-se o menino, com o máximo dos nossos recursos, mas não se abandone o bicho, que também é vivente.

Imagine-se, por uma hipótese, que o meritíssimo em questão, em vez de se dedicar à assistência juvenil, fosse desses juízes que aplicam o código penal aos delinquentes. Poderia por acaso sua senhoria declarar de repente: “Como o homicida é o mais hediondo dos criminosos, doravante só cuidaremos de punir e prevenir o homicídio. Todos os demais delitos ― roubo, espancamento, sedução, ferimentos leves, etc., serão postos de parte, para que nos empreguemos unicamente em pegar e castigar quem mata o seu semelhante”...

Não seria uma extravagância? O juiz condena o tarado que praticou crime horrendo, mas castiga igualmente o bêbedo que depredou o bar. Tudo é crime ― a diferença está no grau de gravidade. Assim somos todos que nos interessamos por levar um pouco de assistência aos pobres animais que o homem, o chamado “rei da criação”, usa, explora, maltrata, come, tortura: socorremos os cachorros, nossos amigos de vida e morte, mas esse interesse não nos impede de procurar e amar as criancinhas ― antes nos encaminha para ele, já que o amor em si mesmo é fonte de amor.

São Francisco de Assis é o grande exemplo: foi ele o ser humano e pecador cujas virtudes admiráveis mais aproximaram a condição humana do modelo ideal dado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois São Francisco, longe de desprezar os bichos, levava o seu amor não apenas aos doces animais domésticos que nos auxiliam na luta pela vida ou nos acompanham na solidão; São Francisco conversava com os passarinhos do céu, com os peixes das águas e até às bestas-feras levava a sua ternura, entendendo-se fraternalmente com o “irmão lobo”. E nem sequer por um instante o seu amor aos irmãos irracionais prejudicou ou diminuiu a sua divina caridade para com os humanos. Antes a preparava, senhor Doutor, antes a encaminhava.

Estranhos são os caminhos da virtude. E quem sabe se não há por aí muita alma fechada que, começando a se interessar pelos cachorros, acabará se apaixonando pelos homens?

rachel-de-queiroz
x
- +