Meu prezado aniversariante:

Você hoje completa 35 anos, e não quer ser festejado, e se afunda em obscuras melancolias, dizendo que não sabe para que nasceu nem para que terá vivido. É perguntar muito, indagar para que se vive, para que se nasce. Talvez a gente nasça como as folhas, as moscas e os peixes, por uma razão de arte pela arte, ― só para realizar o milagre do nascimento e a performance ainda mais miraculosa que é a continuação da vida. Para executar a mágica de mandar o sangue do coração para o corpo, e fazer com que os tecidos cresçam e se reproduzam, e que os olhos enxerguem, que os ouvidos ouçam, que as pernas andem. Já não é finalidade bastante? Viver pela complexidade, pelo virtuosismo, pela dificuldade e risco de viver. Faz 35 anos que você equilibra o seu sopro de vida entre perigos de toda natureza ― há 35 que a sua vida anda por um fio, e menos do que por um fio, quando apanhou coqueluche pequenino, quando teve tifo aos 11 anos, quando escapou de morrer lutando, aos 20. Você, que compreende esporte, que adora as competições duras e arriscadas, não apreciará no seu devido valor esse esporte perigosíssimo de viver, mais difícil que o mais difícil dos alpinismos? Para que andar atrás de soluções metafísicas quando a questão se explica por si e tão singelamente? Pedir explicação da vida é como procurar saber o que Beethoven queria dizer ao compor a Apassionata. Não queria dizer nada, naturalmente, só queria dizer música, que é uma coisa integral, completa, sozinha. Vida também só quer dizer vida. Pelo menos essa explicação basta para a minha simples filosofia. Ver o sol amanhecer e o sol se apagar, com o meio dia pelo meio e a lua depois, já considero finalidade suficiente.

Mas se você tem no espírito um pouco da peçonha de Hamlet e faz questão de saber porque existe o reino da Dinamarca, se quer um sentido, uma explicação, e principalmente uma finalidade para a sua existência, ― será que a vida de alguém que de você depende não lhe dará explicação bastante?

Não sei se lhe lembra a cruel resposta de Machado de Assis à suposta pergunta de Dona Plácida aos autores de seus dias: “Para que me chamastes”? “― Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos num momento de simpatia”.

Você, ao menos, não foi chamado só para isso. Talvez realizasse uma variante melhorada da ronda de Dona Plácida; todos nós não a cumprimos? Mas, passado um certo momento, o seu caminho e o de Dona Plácida nitidamente se bifurcam.

A história é longa e começa nesse fim de agosto de 1911, quando você, aos gritos, se chocou com o mundo. Sofreu o horrendo susto da vida, ao engolir o primeiro ar nos pulmões. Chorou e teve consciência da dor antes mesmo de ter consciência de si próprio. Penosamente, aos tombos e aos balbucios, gastando nisso meses infindáveis, aprendeu as artes difíceis de enxergar, de pôr-se de pé, de andar, de usar a linguagem dos homens. Aos cinco anos de idade deixou sua terra e, levado por pai e mãe, partiu no seu cavalinho chamado Zumbi, cortando matas, vadeando rios, subindo ásperos caminhos, dormindo em ranchos e comendo de farnel. Para quê, para quê?

Fixou-se em terra estranha e talvez por esse motivo nunca tenha perdido a vaga sensação de nostalgia que fez de si um isolado entre os outros. A angústia da adolescência sofreu-a toda, com plenitude e com extravagância. Sentia em si a força da vida, queria entregar-se a ela, mas ao mesmo tempo temia essa força tão embriagante e tão poderosa. Fez-se homem e carregava consigo essa riqueza singular de ser homem, sem saber o que faria dela. Mas quando a dissipava, tinha a sensação de estar desperdiçando algo de precioso e insubstituível.

Muitas vezes pensou em se matar ― não porque a vida lhe fosse particularmente inimiga, entenda-se, mas porque lhe parecia ilógica e fútil. Todo esse esforço de acordar, de aturar as criaturas, de executar os gestos da vida e gozar os prazeres da vida, para quê? Talvez fosse você um crente roubado da sua crença, um ateu místico, que é a raça mais sofredora de ateus. Não acreditava em nada ― e odiava o mundo por isso.

E assim, vinte e nove anos andou você, sem fé em si nem em nada, vivendo por indolência, não se matando por falta de iniciativa ou por medo da dor, e se desprezando por isso, se chamando de covarde.

E então, aos vinte e nove anos de idade, teve a oportunidade de socorrer alguém, acudir a alguém que, de certo modo, representava um caso pior do que o seu. Você achava que nada tinha, mas também não perdera nada. Essa criatura, não: acreditara na vida e sentia que a vida a traíra, julgava que o mundo valia o esforço de viver, e o mundo, contudo, não a quisera. E você, acudindo a essa criatura, amando-a, consolando-a, deu-lhe tudo que ela não tinha e que pedia ― esperança, razão de ser, alegria, amizade, confiança, paz. E deu-lhe, sobretudo, o inestimável presente da sua companhia.

Procure encontrar aí a sua explicação. Dirá talvez que é uma explicação que nada explica, porque afinal a vida do salvado é tão sem sentido quanto a vida do salvador. Mas você não é um filósofo, é um simples homem; não procura propriamente saber, procura antes justiça. Quer é pagar o preço para fruir em sossego algo que recebeu inexplicavelmente grátis, algo que recebeu à toa.

Será que assim ficam justas as contas? Foi uma vida por outra. Quando chegar a sua hora, se tiver que aparecer ante alguém, não tenha medo de se apresentar com as mãos vazias. Sua justificativa estará na pessoa da mulher que você amou e salvou, cuja vida recuperou tão integralmente quanto se a tivesse apanhado no mar, onde se afogava, trazendo-a nos seus braços até a praia.

rachel-de-queiroz
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