Menino Jesus, ora viva, que nos chega outro Natal. Sendo que nesta era de 60, contrário do que nos antecipava o nosso pessimismo, as coisas vão-se encaminhando para melhor. Desta vez você não permitiu confusão, não disse que ia ser magistrado apenas, nem mandou que os anjos da guarda se recolhessem, para não fazerem propaganda na hora da eleição. Deixou os anjinhos soltos, soprando no ouvido do pessoal onde é que era para ser traçada a cruzinha na cédula. Deixou que os ouvidos se abrissem e os peitos oprimidos falassem. Ah, Menino Deus, não está sentindo como este dezembro parece mais desanuviado, o céu mais claro, as gentes mais esperançosas? Com as greves e tudo ― que estas greves não são de raiva, são de quem acredita; gente que reivindica porque espera justiça e, digamos a palavra fatal ― paridade! Justiça e paridade, para eles, é a mesma coisa. E afinal foi concedida, o que deixou todos bem.

O presidente eleito operou com felicidade a sua vista acidentada, no que mais uma vez nos mostra que as suas intenções são excelentes. Pois, mesmo a homem da sua acuidade, o uso de apenas metade da visão não seria bastante para quem tanto tem a vigiar e a fiscalizar; dessem-lhe os cem olhos de Argos e ainda seriam poucos para que o homem enxergasse tudo que precisa ver.

E falando na ausência do presidente, outras ausências nos ocorrem; será que com as festas do Natal voltarão ao ninho as pombas voadoras espalhadas por aí, em obediência à nova moda que manda emigrar forçosamente os eleitos? Agora não se elege ninguém, sequer vereador de Imbariê, que não se ache no dever de uma vilegiatura repousativa em ares europeus. O que vale é que ainda são todos bastante provincianos, bons provincianos, diga-se, querendo no Natal o seu peru em família, a sua missa do galo, a distribuição dos presentes à criançada.

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Menino Jesus, no dia santo do Seu Nascimento, não vou mais fazer queixa de ninguém. Deixa pra lá. Quem errou, errou, S. Pedro é que é o porteiro do céu e o pesador de pecados, não eu. O que me interessa agora é o futuro. No Ceará, meu Menino. Na Paraíba, Piauí, Alagoas, Sergipe e nos outros. Desta vez, vamos, não é mesmo? Já pensou, meu Pequeno Grande, que beleza serão os Natais que estão por vir, quando nós deixarmos de ser apenas folclore; quando o mês de dezembro não for principalmente o mês em que se acaba o legume; quando em cada casa de pobre houver uma galinha assada para a ceia do Natal? Aqueles menininhos de barriga inchada, nus e amarelos, em vez de ficarem com fome, brincando com um triste boi de osso no terreiro varrido, ganharem bolo, brinquedo, roupinha nova, rede para dormir ― porque o pai já não é um desvalido ou um retirante? Pensar que pode vir um ano ruim, mas a gente enfrentar com calma o flagelo, porque há água armazenada, há gêneros nos silos, forrageiras nos roçados, trabalho para todos. Falei em silos ― olhe, basta isso, Menino Jesus: no dia em que aquele povo souber mesmo o que é silo e tiver silo para usar, o problema está resolvido.

Pense também nas cidades grandes, A vida tão dura, a comida tão cara, os pobres cada vez mais apertados. Chegou a hora de dar um jeito. Parar com tanta riqueza esbanjada, com a arrogância dos protegidos. Nós confiamos que o homem entendeu bem: ― ninguém está querendo brilhar para o estrangeiro com nenhum Taj Mahal de concreto armado, o que se deseja é gente que cuide no leite, no feijão, na carne. Carta de ABC, remédios nos ambulatórios, leitos no hospital. Prioridade para a casa e a comida e não para os automóveis de um milhão de cruzeiros! E também quem nos assista e cuide ― nada de assaltos, nada mais de curras; e, acima de tudo, precisa que se dê destino humano aos meninos vira-latas que se espalham pela cidade toda como gatos enjeitados.

Nessas esperanças é que nós todos nos embalamos, Nosso Senhor Menino, na hora de comemorar os mil novecentos e sessenta anos do Seu Bendito Nascimento, naquela manjedoura em Belém. E sonhemos que aquele boi e aquele burrinho, que foram os Seus companheiros, sejam também os nossos, símbolos do alimento e da ajuda de que tanto carecemos.

O pedido é humilde, pois humildes somos quase todos ― sessenta e tantos milhões. E pedimos apenas aquilo que Você Menino, Você mesmo ensinou que nós pedíssemos a Seu Pai que está no Céu:

― O pão nosso de cada dia nos dai hoje...

rachel-de-queiroz
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