Bato estas notas em plena Quaresma, — para ser exato, na quarta-feira de cinzas. E ligando o rádio para ouvir notícias, depois de três dias sem jornais, escuto que o Cardeal vai dar cinzas ao povo depois da missa vespertina. Parece estranho, não é? Cinzas era cerimônia matinal por excelência pegando o pessoal ainda meio tonto da folia, muita gente chegava mesmo a juntar a cruz santa na testa com um vago resto de confetes mal tirados do cabelo. Ai, tudo muda, até as cinzas de depois do Carnaval!

E falando em carnaval, creio que fiz uma descoberta: carnaval é festa de duas classes apenas. As chamadas classes humildes ou pobres e os ricos. Gente como nós, — classe média — é que afeta não gostar de carnaval e vai para fora, por despeito ou preconceito. Bovarista como toda classe média, gostaria de frequentar o baile do Municipal, do Copacabana, ou congêneres, mas falta-lhe a pecúnia necessária para despesa tão grande. E misturar-se com o povo no folguedo da rua ou frequentar bailinhos micha — Deus te livre. São eles que a gente vê de cara amarrada, fazendo fila nos ônibus da Mariano Procópio, ou então, durante os três dias do brinquedo, na rua, mas vestidos de paisano, olhando com antipatia ou tédio os blocos de sujos que evoluem pelo asfalto da Avenida. São também os maiores fregueses do carnaval de televisão.

Os ricos, ou seja, gente que pode gastar mais de 20 contos numa noite (sem incluir o preço da indumentária), enchem o Municipal, as boates, os grandes bailes dos hotéis de luxo. Convidam atrizes de Hollywood para que elas vejam que eles também sabem se esbaldar, fazem cruzeiros de iate a fantasia pelas águas da Guanabara, promovendo memoráveis farras em ignotos desembarcadouros da baía.

Chegam até a confraternizar com o carnaval de gafieira e escola de samba, muitos talvez por esnobismo, outros mesmo por singela alegria, porque, apesar do que parece, rico é de carne como nós. Tem deles ruins, tem deles bons, uns chatos, outros inteligentes, vários burríssimos, — enfim humanidade misturada como a daqui de baixo. A diferença deles está quase toda nos automóveis, nas residências e na padronização. Sim, o pior de rico é que eles são por demais padronizados. O que um faz outro faz. Quando um inventa qualquer bossa boba, pode jurar que todo o bando imita. Por exemplo, se uma moça rica dá para fazer cerâmica ou abrir armarinho (que elas chamam de boutique) tudo corre a amassar barro e a construir forninho da copa, ou passa a vender metro de pano por trás de um balcãozinho decapé. Ou talvez não se use mais decapé, não sei. Foi invenção deles, também, bossa infernal para desmoralizar belos vinháticos e jacarandás. Por falar em jacarandás, e quando elas deram para ser decoradoras? E a mania dos arranjos florais? Davam de garra num pedaço de pau seco, pintavam um abacaxi de dourado, juntavam uma cuia, um caco de barro, espetavam por cima um antúrio — era um arranjo floral. Sim, uma das coisas por que eu não gosto de rico é essa padronização. Até a gíria deles é boba, misturada de palavras em inglês, qual.

Mas viemos a falar em rico por acaso, o assunto era carnaval. Andei os quatro dias na rua e posso afirmar que o carnaval de rua não morreu e a esta altura parece que jamais morrerá. Há muitos anos não via tanta gente brincando, quer os blocos, quer o folião isolado, principalmente na terça-feira, pois nos outros dias a chuva prejudicou um pouco os folguedos. Gostei bastante, também, dos João Teimoso do Dr. Saladini, que estavam muito vistosos e engraçados. Muito melhor que as eternas figuras nos postes, dos carnavais anteriores. Foi pena a ignorância do pessoal, derrubar quase todos os bonecos. Embora tenha sido um bom divertimento.... Juntavam-se dez e 20, danavam-se a tombar um calungão, o bicho caía, se levantava sozinho; a turma fazia tanta força que até gemia. Mas nessa altura quase sempre chegava um guarda e acabava a brincadeira. Era uma áfrica derrubar um João-Teimoso antes do guarda chegar.

Aliás, falando em guarda — não haveria um jeito de fazer guarda brincar carnaval também, embora de serviço? Porque esses frequentes conflitos entre foliões e policiais nascem do contraste — o povo se esbaldando, os pobres dos guardas dando duro. Se a polícia pusesse os cosme-e-damião não digo de jardineira, que não seria decente, mas nuns belos trajos de índio, para ser nacionalista? Disfarçava o cassetete num tacape — tacapinho maneiro, que não fizesse grande estrago, e garanto que eles assim manteriam a ordem muito melhor. Dariam os seus pulinhos, comungariam com a alegria da multidão, sem se sentirem estrangulados pela farda, abafados pelo capacete. Quando fosse hora de cana — haveria até de ser bonito, ver aquele bloco de índios rodeando os foliões recalcitrantes, em marcha para o tintureiro. Os turistas podiam até pensar que era enredo patriótico de alguma nova escola de samba.

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