Nesta hora difícil, em que a risonha, a irresponsável, a amada cidade se transforma na sede de tão insólitos piqueniques, e um silêncio constrangido lhe empana a alegria bisbilhoteira, melhor será que não a encaremos de perto, que afastemos discretamente os olhos, como o faz qualquer pessoa de bons sentimentos quando involuntariamente testemunha o seu próximo a sofrer um vexame. Já que não se pode acudir (pois a tentação é acudir) — pelo menos fingir que não vê.
E tentando não enxergar, nem para a direita, nem para a esquerda, nem o passado novembro, nem o atual dezembro, o melhor é pedir emprestado ao mestre Vivaldo Coaracy a sua máquina particular de explorar o tempo e contemplar a cidade do Rio como era dantes — não agora, oh não agora, mas nos seus tempos de menina e rapariga, na sua tumultuosa adolescência. Aqui está a máquina, que é na verdade um livro, mas um livro mágico; chama-se Memórias da cidade do Rio de Janeiro, saiu faz pouco tempo, recebi-o do autor com uma dedicatória lisonjeira, tão lisonjeira! Mas logo vejo que as lisonjas eram para me adoçar a boca, pois na última linha vem a provocação. A data é de Paquetá, “ilha de verdade”. Ai, não tripudie, meu caro amigo, não bata no adversário caído! Assim, com esse gosto de judiar com os vencidos, você até poderia pedir ingresso no PSD! Sim, a sua ilha, a sua Paquetá, por menor que a minha querida Governador, por menos bela, por menos desejável, por mais longe, por tão subdividida entre tantos donos que lá se vende terra aos litros — não teve ponte e não foi virada península, e depois virada em subúrbio. Eu sempre me revoltei com aquela ponte. Sabia, meu coração me dizia que nada de bom viria por ela! Vocês aí em Paquetá, no seu esplêndido isolamento, têm a impressão de que são pelo menos a Inglaterra. Enquanto nós nos sentimos assim como uma espécie de Polônia...
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Postas de lado as nossas brigas regionais de paquetaenses e governadores, devo confessar que o livro é belo. Pelo que diz e pelo que sugere, por esse passado — como posso dizer? — inocente, sim, inocente, é o que ele foi. Porque se a cidade era rude e ainda não tinha a riqueza nem a malícia de agora, seus pecados maiores eram uma arruaça de procissão, uma disputa entre irmãos do Carmo e irmão da Misericórdia por amor de precedências de sacristia, algum namoro de rótula, um tiro de embuçado, um enjeitado exposto na Roda.
Dá um gosto e uma saudade ir acompanhando com o livro as lembranças mais antigas da cidade, desde o seu nascimento por obra do belo e infeliz Estácio, ali na Cara do Cão, e o crescimento no Castelo, e a descida para a Várzea, e os galanteios com os vice-reis, e o opressivo interregno às mãos do padrasto D. João, e a paixão tempestuosa pelo Príncipe — ai, o alvoroço do primeiro amor! — e depois o rompimento e o casamento de conveniência com o Sr. D. Pedro II, que acabou na melancolia daquele divórcio amigável em 15 de novembro de 1889. De lá para cá, a cidade tem levado vida irregular, ora com soldado, ora com paisano, sem falar na aventura com o gaúcho que acabou se matando por causa dela. Mas esses tempos de vida dissipada o memorialista despreza. O que ele ama é a menina e moça. São os chafarizes e os pretos de ganho, os conventos, as igrejas, os velhos sobrados que o progresso bota abaixo, as ruas estreitas que eram como o alpendre das casas de moradia. São os caminhos, as veredas de índio que viraram estradas, e depois tiveram calçamento e viraram ruas, e depois demolidas, asfaltadas, chapeadas de ferro e cimento, eletrificadas, se internacionalizaram e passaram a ser chamadas avenidas. E os teatros, a tumultuosa história dos teatros do Rio. Hoje, o local de todos os nossos velhos teatros é mal-assombrado; diz que ali, por exemplo, no começo da Senador Dantas, onde foi o Lírico e hoje é a bolsa dos carros em segunda mão, aparecem em plena luz do dia, tenores de calção e prima-donas empenachadas. E já se viu, sobre a capota de um Buick, um velho bigodudo, de dragonas e espada, a declamar Os dois Sargentos.
Se a gente desse pessoa humana às cidades, diria que Berlim é um granadeiro, Londres é um Coronel Sahib reformado com pensão modesta, Nova Iorque uma clubwoman, Moscou um cossaco que leu Marx, Roma uma imperatriz que depois de velha abjurou os deuses e se batizou, Washington um senador republicano, São Paulo uma fazendeira de café que casou com um emigrante rico; Berna é uma queijeira gorda, Florença uma deusa que virou estátua, Paris uma cocotte famosa amante do primeiro-ministro, Chicago um gângster milionário, Madri um falangista que já foi toureiro, Milão um dono de fábrica amador do bel canto, Lisboa uma fadista casada à força com um sacristão, mas que não se esquece do seu namorado marinheiro. E o Rio? Bem, acho que o Rio seria uma mulata. Com tudo que a mulata tem. Mulata que desceu do morro, alugou apartamento na rua do Riachuelo, e vive com um jogador de futebol. Frequenta auditório de rádio, toma banho aos domingos em Copacabana, paga promessa na Penha e faz carnaval junto ao coreto de Madureira (acabaram mesmo com a Praça XI), recebe presentinhos de um banqueiro de bicho e tem lá os seus segredos com um tira da delegacia de costumes... Já quis cantar na Nacional e até mesmo levou gongo em programa do Ary; mas hoje o seu sonho é ser artista de boate e vive rondando o Carlos Machado e o Silveira Sampaio. Já não se incomoda com política, salvo quando se apaixona por um cara mais atrevido; aí frequenta comícios, carrega faixas, vota, assiste às contagens no Maracanã — mas o seu ardor é muito mais sentimental do que cívico.
Sem orgulho, recebe bem qualquer um, mas nota-se que tem mais afinidade com nortistas e mineiros. Talvez porque, como é sabido, nós do norte apreciamos muito mais a mulata do que os nossos irmãos do sul.
Pode-se mesmo dizer que o carioca puro-sangue só é puro zootecnicamente, pois na verdade ele é dois oitavos baiano, cearense e pernambucano, um oitavo mineiro, outro oitavo sírio-libanês, dois oitavos fluminense, e os dois restantes de origem indiscriminada...