Este ano completaria os seus cem anos de vida — (nasceu em Viçosa, na Serra de Ibiapaba, Ceará, a 4 de outubro de 1859) um homem bom e simples que, à força de honestidade e de estudo, conseguiu chegar a ser um sábio e, como diziam muitos, talvez um santo.

Conheci Clóvis Bevilacqua numa das primeiras vezes em que vim ao Rio, levada à sua casa pela mão do meu ilustre professor e amigo, o Dr. Mattos Peixoto. Era na Tijuca, uma casa grande pintada de amarelo, ao fundo de um jardim maltratado. Dentro, a famosa excentricidade da família, — a sala de visitas transformada em quarto das crianças, a cozinha virada em escritório das moças, as cadeiras amontoadas na alcova do casal, como num guarda-móveis — a dona da casa explicava que se haviam mudado para ali fazia poucos anos, não tinham tido tempo para arrumações. D. Amélia, muito amável para a jovem colega de letras, mostrava a sua cachorrinha, mostrava os seus livros, mostrava a penteadeira onde costumava escrever — e que até lhe dava um pouco de reumatismo por causa do tampo de vidro, muito frio. A moça Dóris, de longos cabelos soltos, queixava-se de dor de cabeça e foi tomar ar no jardim. E, no meio daquela singular família, Mestre Clóvis, muito alvo, muito rosado, impecavelmente vestido, parecia um anjo de bigode branco solto numa jangal tropical.

A fala baixa, macia, o olhar risonho, o ar tranquilo, Clóvis convidou o amigo a sentar e logo se puseram os dois a falar em Direito. E nós, mulheres, continuávamos a percorrer a casa, que D. Amélia insistia em mostrar, com especial complacência (via-se que aquele mundo para nós confuso e inusitado lhe dava conforto e agrado aos olhos) enquanto nos nossos calcanhares a cachorrinha fazia manha; tinha apanhado uma indigestão com bombocado, explicava a dona.

Muitas anedotas correm sobre as singularidades da família Bevilacqua; sei que uma certeza me ficou daquela primeira visita, confirmada nas visitas que se seguiram: aquela gente, além da sua perfeita indiferença pelas opiniões e preconceitos dos outros, aquela gente se amava muito, entre si. Ou então era Clóvis que desprendia uma tal aura de amor, que os envolvia a todos e dava para ricochetar de volta, até ele.

Estava a visita para acabar quando apareceu à porta uma comissão de cavalheiros, que viera receber um parecer sobre certa questão jurídica, que então fervia. Clóvis foi à sua banca, apanhou algumas folhas de manuscrito e as entregou aos homens. O chefe do grupo não olhou sequer o arrazoado: enrolou respeitosamente o papel e retirou do bolso um envelope que passou às mãos do mestre. Clóvis, por sua vez, também não olhou o conteúdo do envelope; ficou com aquilo na mão, abanou-se com ele, bateu com ele na borda da mesa — a impressão que dava era que o envelope o estava constrangendo. E da primeira vez em que D. Amélia passou por perto, ele enfiou discretamente o invólucro na mão da mulher. D. Amélia nos piscou o olho, afastou-se conosco para a outra sala, abriu o envelope e disse sorridente:

— É para o meu lanche amanhã, na Colombo.

Naquele tempo — 1931, quando se jantava no Cassino da Urca por 10 mil-réis, seria realmente um lanche de nababo, pois D. Amélia nos mostrava na mão dois contos e quinhentos.

Outra prova tive desse amor em que falei. Foi anos depois, quando se preparava a entrada de Manuel Bandeira na Academia. A certa altura da campanha, houve uma onda de receio de alguma falseta dos “passadistas” contra o nosso divo modernista, e os amigos do poeta resolveram procurar os acadêmicos para se fazer uma cobertura geral da votação provável. A mim coube visitar Clóvis, e lá fui, já o encontrando em outra casa, na Tijuca, ainda, para onde os Bevilacqua se haviam mudado recentemente. Veio a conversa, a visita às novas instalações, a alegria de Clóvis pela luz de sol que lhe batia na sala pela manhã, e afinal dissemos ao que viéramos. Então pela primeira vez sentimos a firmeza do ferro forrando a doçura do velho anjo. Depois de lhe falarmos em Bandeira, de lhe dizermos das grandezas do Bardo, da sua marca sobre as novas gerações, da chama de poesia pura que, como as línguas de fogo do Espírito Santo, desceria sobre as poltronas acadêmicas no dia em que lá recebessem o nosso magro Ariel pernambucano, Clóvis concordou carinhosamente — já ouvira falar com muitos elogios nos versos do Dr. Bandeira. Mas quanto ao voto — pois não era do seu voto que nós indagávamos? Ele não podia prometer nada. Fazia vinte ou trinta anos que não votava em eleições acadêmicas: — “desde o dia em que recusaram o ingresso de minha esposa à Academia”. Eu, que o conhecia, aceitei logo o não. Mas a amiga que ia comigo, ainda teimou, procurou argumentar, pedir. Mas Clóvis não cedeu uma linha. E lá da sua cadeira ao canto da sala, D. Amélia balançava a cabeça como um ídolo, feliz, vingada, recebendo a homenagem real que lhe prestava o marido; ele, o cultor do Direito, o homem por excelência respeitador e entendedor de leis, insurgir-se por amor dela contra a lei fundamental do sodalício — aquela revivescência da Lei Sálica, que é um dos pontos de contato entre os Capetos e a Ilustre Companhia...

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Recebo hoje em separata do Diário do Congresso um projeto da autoria do meu caro patrício o Deputado Colombo de Souza, determinando providências para a comemoração do centenário do nascimento de Clóvis Bevilacqua.

Nestes tempos confusos em que vivemos, quando a Lei e a Constituição servem apenas como mau pretexto para intermináveis piqueniques bélicos, creio que é um gesto prudente e louvável este lembrete oferecido às novas gerações: o Direito, por mais espezinhado e renegado que ande, tem muito mais capacidade de sobrevivência do que a força. Festejemos Clóvis, reeditemos a sua obra, premiemos seus biógrafos e seus comentadores, e da inumação das suas cinzas na cripta do Fórum Clóvis Bevilacqua em Fortaleza, façamos uma festa cívica que impressione os moços. Precisamos mostrar a esses meninos que crescem entre retornos e tanques de guerra, que a força pode esmagar, mas o Direito sobrevive. Que um doce velho, encontrado morto, sozinho, há alguns anos, certa manhã, naquela sala onde batia o sol — que esse velho de olhos quase cegos de ler, humilde de coração, mas cultor fanático dessa abstração poderosa que é a lei, ao fim de contas resulta muito mais importante e precioso para o patrimônio da sua terra de que todos esses impávidos valentões e leguleios, que, como o boticário de Romeu, podem comprar a nossa miséria, mas não compram a nossa consciência...

rachel-de-queiroz
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