Ora, quando saírem a público estas mal traçadas já não será a sua signatária uma ilhoa, ou habitante de ilha, mas uma simples peninsular, igual a qualquer conterrânea do general Franco. Pensai na dolorosa diminuição. É como se de repente uma pessoa que fosse duque ou marquês se visse rebaixado a comendador. Pois, embora por ela já andem carros acima e abaixo, 20 de janeiro de 1949, ou seja, no dia do mártir São Sebastião, será inaugurada oficialmente a ponte de cimento armado que liga ao continente a Ilha do Governador.

Adeus esplêndido isolamento. O asfalto já nos ameaça com seus tentáculos de piche, as cavadeiras já desmontam os morros, os malhos mecânicos já rebatem a terra onde será o leito das futuras ruas — que se chamarão ruas propriamente ditas e não estradas como até agora se chamavam em esmagadora maioria — estrada da Bica, estrada da Porteira, estrada Capitão Barbosa... Não dou um ano, e não mais teremos cabritos e galinhas pastando na frente das casas; dentro de um ano que será feito do bando de gansos do nosso amigo seu Nico, que parecem uma comboia de fragatas reais quando discorrem majestosamente pelas areias alagadiças do Dendê?

Onde hoje há pés de fruta-pão e cajueiros haverá bombas de gasolina. A estrada do Galeão, que até agora parece um caminho sertanejo, cortando capoeira rala, será a rodovia-tronco — que horror meu Deus — será uma espécie de avenida Ataulfo de Paiva, e terá o nome de algum grandola do estado novo, ou do estado atual, ou de um potentado argentino, conforme for a moda do dia.

As patroas não sairão mais à rua vestidas de cetim branco com coroas de rosa no cabelo. O homem da tripa não mais venderá a sua mercadoria no carrinho de mão coberto de folhas de taioba, porque então teremos higiene e tripa fresca deve ser contra a higiene.

Vai dar cana nos terreiros e na calma da noite alta não se ouvirá atoado dos pontos, a batida cava das caixas. E os bêbedos, os bêbedos líricos da Ilha, serão massacrados pela Rádio Patrulha — sim porque entre os males da situação de península não será dos menores o caminho aberto aos façanhudos heróis da polícia panzer. E já que teremos polícia, passaremos igualmente a ter ladrões, coisa que desconhecíamos — a não ser algum galhofeiro ladrão de galinha, que furtava em geral para comer ali mesmo, para fazer piquenique com os companheiros à beira da praia, em noite de lua. Roubo de esporte, não de crime. Ninguém se atrevia a roubar nada maior que um frango — porque fatalmente seria apanhado quando tentasse tomar a barca com o produto do furto, ou denunciado pelos vizinhos se o guardasse em sua casa. Pois cultivaremos ladrões doravante.

Deixaremos de ser quase um país independente, como até hoje o éramos: seremos terra conquistada pela Metrópole, ocupada por ela; irão comprar nossos terrenos baldios, povoá-los de casas suburbanas e edifícios de apartamentos; e a última gota será quando a Central do Brasil estender um ramal para cá.

Adeus, Cantareira, adeus. Quem diria que teríamos saudades? Desde o tempo do império que és nossa companheira inseparável e nossa tirana, mas tão antiga união estava fadada a terminar em separação. Afinal, se Romeu e Julieta se separaram, se se apartaram Abelardo e Heloísa, por que não nos apartaremos nós? Contudo dói. Não teremos mais um pretexto para sair correndo da casa dos amigos porque devemos apanhar a barca de tal hora. Qualquer hora nos servirá, não teremos horário, não seremos importantes e apressados, mas cariocas como quaisquer outros, escravos da fila do ônibus. Adeus rodinha de conversa nas barcas; adeus lazeres de namorados que tinham tanto tempo para noivar, contando as lembranças do passado e os projetos do futuro, que no dia do casamento tinham a impressão de que já estavam comemorando as bodas de ouro. Adeus, gaivotas e botos. Adeus farol dos dez minutos. Adeus dique Afonso Pena. Adeus, mar, adeus céu. Adeus vida velha, adeus.

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