Esta que passo a contar é história verídica; aliás, não costumo andar com mentiras. Se enfeito um pouquinho, é porque o leitor não gosta de uma história nua e crua, exige que a gente lhe ponha as tintas do ofício. O núcleo, porém, é sempre autêntico. Esta de hoje é autêntica até nos enfeites; ou por outra, se houve interferência de quem narra foi antes para podar excrescências técnicas do que para acrescentar ornamentos.

O caso foi que o moço se formou em medicina e viu-se com o canudo na mão e todo o vasto mundo diante de si. Queria ficar rico e ficar sumidade, mas ficar rico vinha em primeiro lugar. Claro, é a ordem natural das coisas.

Com esse propósito, largou-se para o interior, com pouca roupa e alguns livros; aportou numa cidade sertão adentro, — cidade cheia de matutos ricos — alugou quarto no hotel, e foi visitar os colegas locais.

Na Faculdade e na prática de acadêmico dedicara-se à clínica médica. E já tinha no fundo da maleta a sua placa de latão, presente de formatura de uma tia, dizendo justamente isso: Dr. Fulano — Clínica Médica.

Eis porém que o colega a quem visitara logo de saída, lhe abalou seriamente a vocação. Clínica? Mas qual! Em clínica você leva cem anos curando impaludismo e mal de cólicas, e o mais que consegue é uma reputação de médico de aldeia, a 20 mil réis a visita. Cirurgia — cirurgia é que é a mina, a fortuna. Abre-se a barriga de um sujeito, tira-se qualquer coisa de dentro e cobram-se cinco contos, dez contos. Se o doente morre, cobra-se mais, que é por conta da herança.

Visse ele, por exemplo — e o tentador mostrava a sua prosperidade, o terno de linho, o relógio Omega, o sapato arranha-céu — visse ele, já nem sabia mais quantas operações fizera — quantas gastrectomias, quantas hérnias, quantas gastroenteroanastomoses, quantas cesarianas; apendicectomias — isto nem tinha mais conta. Naquele próprio dia faria uma. E convidava o colega a tomar parte na operação, como seu assistente.

Esmagado, convencido, o principiante acompanhou o mestre à casa de saúde, enfiou o avental e máscara, e pôs-se ao lado da mesa de operações, discípulo atento a ver aquele ás dos ases a dar as suas sacudidelas na árvore das patacas e da fama.

O homem até parecia um mágico, de mangas arregaçadas, bisturi na mão, olhar veloz. Deu logo o primeiro talho, como quem dá uma penada em fim de carta. Não era desses vagarosos, tímidos operadores que levam descascando o paciente, pelezinha por pelezinha. Só naquele golpe inicial cortara epiderme, derme, panículo adiposo, camada muscular e peritônio, deixando à vista a tripa e mais entranhas. E talho tão fundo como vasto, pois abria de um lado a outro o vazio do operando. O diabo é que o doutor nem pôde enfiar por ele os dois dedos a fim de catar o apêndice, porque a ferida começou a sangrar aos borbotões. O operador metia gaze, compressas e mais compressas, enfiava pinça onde uma pinça coubesse, chegou a esgotar o estoque. E o sangue correndo. Já do apêndice nem se lembrava e se apêndice houvesse, como o acharia entre tanto sangue e tanto coalho?

Passaram-se alguns minutos — e o homem sangrando. O mestre já gastara quilômetros de gaze, já suara o gorro e já arrancara a máscara ensopada do seu suor de agonia. Afinal, jogando ao chão uma compressa encharcada, disse para o assistente temeroso: “Fique aqui pondo umas compressas que eu vou ali e já volto”. O moço, apavorado mas ainda crente, pensando que aqueles eram os percalços da arte, obedeceu. E entre compressas de gaze e sangue, passaram-se cinco minutos; aos dez o assistente chegou à porta, desorientado, mas não avistou o mestre; o doente, anestesiado apenas da cintura para baixo, já dava sinais de inquietação, compreendendo que faltava alguma coisa. Quando 20 minutos se passaram, e nada do homem voltar, já acabara a ação do anestésico e o operado começou aos berros. O chão não tinha mais um lugar limpo, era só pano sujo. Aí o rapaz não pôde mais, abandonou por sua vez a sala de operações e saiu em busca do operador. Correu a pequena casa de saúde de alto a baixo, e nada; na portaria, afinal, disseram-lhe que o doutor fora até em casa, que era perto. Tão aflito estava o pobre que se tocou para a casa do outro, sem nem ao menos vestir o paletó, assim de avental como estava. Mas ao defrontar a casa, achou a mulata caseira trancando a porta da rua e dizendo que o doutor arrumara os trens numa maleta, selara o cavalo e ganhara a estrada.

O jovem, — pobrezinho! — quase caiu para trás. Ainda teve a consciência de voltar à casa de saúde, arrancar as pinças e os algodões, fechar de qualquer jeito com um esparadrapo a barriga do operado que continuava aos urros, em cima da mesa. É verdade que também viera apanhar o paletó, pois como foi dito acima, saíra de avental.

E por sua vez correu ao hotel, por sua vez juntou os trens na maleta — até a placa que já ia ser pregada na porta — alugou um cavalo, pois ainda não ganhara um de seu, como o outro. E está aqui, contando a história. Diz que voltou à antiga vocação; não se deu bem com a cirurgia. E nunca achou, ou nunca procurou quem lhe contasse o resultado daquela operação.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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