Cada tempo tem a sua moda e vê-se que já passou a moda dos epitáfios, tão cultivada em outras épocas mais românticas. Hoje, quem pode e quer mostrar sentimento esmaga os seus defuntos sob o peso do mármore, do granito e do bronze, ou constrói sobre os sete palmos uma capela de cimento armado, com vitrais, em estilo gótico, ou italiano ou grego, ou ainda num feitio quadrado e medonho, todo eriçado de ângulos retos, com fachada de pó de pedra e portões de ferro fundido, ― estilo que não sei por que é chamado de “modernista”, em gíria de cemitério. E assim, dedicada ao monumental, acha a parentela que já fez bastante; abandona a arte mais sutil de celebrar os mortos com palavras e limita-se a gravar no túmulo o nome e as datas, acrescidas de alguma das fórmulas oficiais: “Orai por ele”, “Saudades eternas”.

Antigamente não havia tanto dinheiro nem tanto espaço dedicado às edificações mortuárias. Os mortos se enterravam no chão das igrejas ou nos pequenos cemitérios do tamanho e do aspecto de uma casa com pé direito elevado, telhado e portão. Lá dentro o aspecto é o de uma espécie de claustro; no meio o pátio quadrado, com o jardim, e nas paredes do fundo, por trás das colunatas das varandas, as fieiras de carneiros pequenos e arrumados uns sobre os outros, à feição de gavetas, mal dando espaço para uma inscrição. São assim os cemitérios de irmandade que ainda se encontram atrás de cada igreja, nas velhas cidades de Minas, tão quietos, tão recolhidos, tão protegidos de intrusos, do sol e do tempo ruim, que até parecem uma espécie de conventos de além-túmulo, exclusivos dos irmãos da confraria.

Sem espaço para anjos, cruzes, bustos e outras estatuárias, a vaidade dos parentes tinha que se limitar aos dizeres dos epitáfios. Há deles em latim, em francês, em prosa e em verso. Uns citam a Bíblia, outros Dante, outros Camões. Dois mais modernos, ou mais republicanos, usaram Gonzaga e Cláudio Manuel. Outros compõem com musa própria, choram filhos infantes e cônjuges perdidos em legendas miúdas e negras, pintadas maciçamente sobre a pedra, ou em letras vasadas no mármore com capitais floridas de iluminura. Há os de coração humilde, zelosos da própria modéstia, que evidentemente deixaram providenciado o epitáfio: o embora seja ele repetido com certa frequência, sempre comove quando encontrado: “Aqui jaz um pecador”. Alguns pedem orações, pedem uma lágrima ou anunciam “suspiros e saudades”. E mães, pobres mães aflitas, dizem coisas ingênuas de cortar coração na pedra que guarda os seus anjinhos, como aquela, genitora da “inocente Maria Cordulina (Dadá), que subiu ao céu aos quatro anos incompletos”.

Mas entre todos os epitáfios que li nos cemitérios de Minas o que mais me comoveu foi o da moça Matilde, nascida em 1846, casada em 1867 e morta de parto aos vinte e sete anos, em 1873. O seu aflito esposo lhe dedicou estes versos:

“Pensam todos que morreste; 
Que viúvo me deixaste; 
Quando apenas na jornada 
Mais depressa um pouco andaste.

Após de ti eu caminho 
Na mesma senda prossigo, 
Meu passo não é tardio; 
Bem cedo serei contigo”.

Podem os versos não ser bons; mas são bonitos por dentro. E além de comovida me deixaram com inveja. Pois qual de nós, minhas irmãs, ousa esperar do viúvo tal promessa gravada no mármore eterno, de nos acompanhar em passo “que não é tardio” e isso depois de nos saberem para sempre caladas e bem enterradas debaixo do chão?

rachel-de-queiroz
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