Hoje peço licença para fazer o necrológio de alguém que era minha amiga e na semana passada morreu de tifo. Não se chamava propriamente Gilda, mas Hermenegilda, e no acréscimo dessas três sílabas vai toda a diferença que a separava do glamour da Gilda do cinema. Que a minha Gilda nada tinha dos dons físicos que a comparassem à estrela – nem nada, igualmente, dos escusados dons morais. Não era moça, era feia, era escura – e principalmente era uma lady, – o que a Gilda famosa jamais foi. Contudo, quantas vezes não lhe dizíamos, contentes em ver a propriedade com que lhe cabia o slogan: “que não havia mulher como Gilda!”

De pequenina perdeu mãe, e a madrasta logo a atirou, não alugada, mas dada de tinta e papel, em casa de brancos. Criou-se entre a sala e a cozinha, varrendo, limpando, fazendo cama, servindo mesa, pajeando criança, areando panela, dando xerém a pinto, carregando a lavagem para o porco. Nunca foi à escola, que os brancos não acreditavam em negro ensinado – bastava que aprendesse a reza para a primeira comunhão. Magrinha, de canela fina, o cabelo entrançadinho, acordava de madrugada, já na labuta, e era dos últimos que iam para a cama, que tinha de lavar a louça da ceia.

Aos poucos, imperceptivelmente, as canelas foram engrossando, o corpo tomando forma, e afinal Hermenegilda estava moça. Moça feita, – por ruim que achassem os patrões privarem-se dela, moça feita, quis se casar e casou. Casou com um soldado, crioulo viçoso, que deixou retrato de ampliação em moldura grande, e o qual ainda hoje, depois de tantas amarguras, Gilda punha em lugar de honra, na sala. Mas pior não podia ser. Deu-lhe filhos que foram morrendo de um em um, – comida não dava, nem agrado, nem respeito. Assim mesmo Gilda atravessou, sem nunca envergonhar quem de vergonha a cobria; e a fim de ganhar para o seu sustento e do filho caçula que conseguira salvar, voltou às cozinhas de branco, à tina de roupa, ao ferro de engomado.

Junto com o seu menino criava também, com apego de mãe, os filhos que o marido arranjara de uma rapariga do morro, mulatinha debochada que não ligava a criança.

“Os inocentes não tinham culpa, não é mesmo?”, explicava ela. E, depois, eram umas crianças bonitas, de feição miúda, o cabelo bom...

Tão ruim era o crioulo ingrato que nada reconheceu; e como paga do bem mal merecido, o que fez foi tomar-lhe um dia os filhos de criação e os espalhar de madrinha em madrinha, sem motivo, à toa, só para maltratar. Parece também que já estava maluco – e dessa maluquice morreu três anos depois, no asilo de Jacarepaguá. 

Gilda poderia ter se libertado então, mas não o fez – continuou sujeita, já agora aos sogros. Era dessas que só esperam libertação da morte e a felicidade dela é que a morte parecia ter tomado a peito ajudá-la, realmente. Assim, não se passou um ano, morreram os sogros, por ela chorados filialmente: e logo depois morreu o filho único, que sempre fora enfermiço e mimado e a trazia tão cativa quanto a trouxera o pai.

Sozinha afinal, aos 45 anos de idade, Gilda teve a impressão de que nascera de novo. Começou a viver por si própria, agora sem senhor nem sujeição. Tornou a casar, e escolheu com cuidado, segundo o seu coração pedia. Ficou dona da sua casa, do seu terreiro, do seu homem, amigo e respeitador, que lhe dava o valor que ela tinha. Pôs cortinas de crochê na janela, arranjou um cachorro de raça, plantou tinhorões em volta do poço. Botou corpo, inaugurou dentadura, ficou outra. Dava festinhas de aniversário, recebia parentes, servindo-lhes aqueles quitutes preciosos que aprendera em casa de branco. Aos domingos ia à missa de braço dado com o marido, pondo afinal em uso aquela dignidade senhoril que trouxera do berço.

O tifo a apanhou de surpresa. Teve que ir para o hospital de isolamento e morreu com dezoito dias de doença. Levou consigo as receitas raríssimas, o coração fiel e certo, a humilde experiência tão duramente aprendida. Não se despediu de ninguém, não adivinhou a morte. Da última vez que falou com alguém de casa, pediu biscoitos. Mas quando os biscoitos chegaram, já ela estava no necrotério, sem fome, sem cuidados, e aparentemente sem saudades. Pela primeira vez não me sorriu quando eu lhe disse adeus.

rachel-de-queiroz
x
- +