Parecerá a repetição de um clichê muito gasto a gente afirmar que o jornalismo não é apenas uma profissão: que é mais que isso, é vocação. Pode ser de clichê, mas é verdade — e o fato é que nem todos os clichês são mentirosos. Esse, por exemplo, não é. Porque o jornalismo não é apenas o sujeito cavar o emprego, efetivar-se, sair todo o dia de casa, entrar no escritório, sentar-se à banca de trabalho e dar conta da sua tarefa. Jornalismo é tudo isso, sim e muito mais ainda, — pois há no oficio um elemento de aventura, uma identificação personalíssima do profissional com o seu trabalho, e há sobretudo, porque não?, um elemento de risco que poucas outras profissões comportam.

É uma espécie de trabalho que não se pode exercer sem uma dose grande de amor por ele — e se não houver esse amor, o sujeito fracassa. Talvez uma das vocações mais aproximadas do jornal seja o teatro, porque para o teatro também se exige o mesmo dar de si que não sei se sai da carne ou sai da alma, a dependência permanente do aplauso público para cada frase que se diz, cada gesto que se faz; e, contudo, não há no teatro aquele elemento de combate, de luta que é, entretanto, a própria essência do jornalismo.

Já li alguém que chamava aos jornalistas de gladiadores; talvez o sejam: e o povo tanto mais os ama, quanto mais eles arriscam o pescoço para o servir e informar.

Pois — é bom notar — já se foi o tempo em que jornalistas mais amados do público eram os articulistas de forma tersa, os brilhantes, os cheios de ideias, os fabricantes de paradoxos, os baluartes da boa linguagem. Esses, para o público moderno, no fundo não passam de uns bons carolas. Para o público, o grande público, aquele que disputa os jornais e paga qualquer preço pela sua folha, o jornalista é o repórter. O que o público prefere não são artigos de fundo cheios de ideias nem-crônicas cheias de espírito: o seu predileto é o repórter que corre os quatro cantos do mundo, que vai entrevistar o bandido no seu coito, o índio na sua oca, que surpreende o político tramando misteriosas transações entre quatro paredes, ou a atriz famosa maquilando-se no seu camarim inviolável. É o repórter que tem como dom inicial e básico do seu ofício a ubiquidade, que vai onde outro ser humano jamais se atreveu a pisar, que arrisca a vida não por ouro, nem por poder, nem por fanatismo — apenas para colher uma notícia. Que exerce, na vida real, a função que o romancista se arroga em relação aos personagens que inventa, — e assim penetra pensamentos encobertos, escuta conversas que jamais ninguém deveria ouvir, adivinha a hora do desastre para lá comparecer com o seu lápis e a sua máquina, está sempre no pior da batalha, no momento crucial do comício, no segredo de todas as coisas secretas.

Querem um exemplo dessa ubiquidade, um tipo padrão do jornalista moderno, esse que é conhecido das multidões e avidamente lido por elas? Não precisamos sair de casa para o apanhar: temos aqui mesmo o ás dos repórteres brasileiros, — o meu prezado colega David Nasser. Não conheço nenhum que, melhor que ele, encarne a figura do repórter em todo o seu diabólico dinamismo, sua absurda coragem, seu faro iniludível por essa coisa elusiva, preciosa acima de todas na nossa profissão: a notícia. Sua espantosa popularidade nasce disso — a espécie de dom de si mesmo que ele fez à profissão. Não vive para si — vive pela notícia. Tudo arrisca por uma reportagem — a partir da própria pele, que ele jamais pensa em poupar-se em troco do risco sofrido obtém a informação, a fotografia, o furo. Ataca poderosos, desmascara os grandes da terra, vive praticamente com a cabeça a prêmio. E só assim se sente feliz, só assim acha que trabalha, que dá conta do seu quinhão de esforço pelo bem comum.

São os modernos D. Quixotes, talvez. Brigam de graça, matam-se à toa. Mas que será deste nosso desgraçado mundo no dia em que se acabar a raça do Cavaleiro da Triste Figura? No dia em que só o povoarem os Sanchos? Vira tudo uma imensa Baratária.

rachel-de-queiroz
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