(Página de polêmica)

Isto é polêmica, sim senhores. Resposta ao senhor Vão Gogo, carioca nativo do Méier, diretor de um nobre semanário (cujo nome não cito porque não quero provocar a polícia de repressão ao jogo), o qual senhor em artigo de fundo teve um ataque de xenofobia e veio disputar sobre pátrias, irritado com quem lhe gaba as graças da sua.

Pois é bom saber, mestre Vão Gogo, que não faço conta de ser da sua terra. Moro aqui de empréstimo, mas sou de longe. Se gabo o pouco daqui que gabos merece, é porque não sou soberba e não cuspo na água onde bebo. Mas confesso que de todo o Distrito Federal, do qual você se orgulha — só tiro para mim esta Ilha do Governador. E explico sem pejo o motivo da exceção: é que a ilha, talvez porque o mar a isola dos maus ares da cidade, talvez por acaso, talvez por favor especial de Deus, na realidade se parece muito com a minha terra. O resto — fique com ele e que lhe faça bom proveito. Copacabana, Leblon e Ipanema, a Cinelândia, a torre da Central e o aeroporto, que me importo? Danem-se. Só me dói um pouco abrir mão de Vila Isabel e de São Cristóvão; a primeira por causa de Noel, o segundo por causa do campo do Vasco e de certas casas velhas de azulejos que há na Rua da Alegria. Esses mesmos, só tenho por eles um afeto distraído de turista; nunca morei lá. E nas cordas da lira de Vão Gogo estarão muito melhor do que nas minhas, — que nem lira tenho, quanto mais cordas.

Ataca você especificamente o cronista de Paquetá que é meu mestre Vivaldo Coaracy; ataca depois o moço Franklin de Oliveira, o ilustre Rubem Braga, filho excelso do Cachoeiro de Itapemirim, estado do Espírito Santo, e igualmente ataca esta sua humilde criada.

Assim recebe a nossa cortesia? Então, supõe em verdade que o ilustre Coaracy ame sinceramente a postiça Paquetá? Paquetá é para ele apenas um mal menor. Veja que é o próprio e brilhante V.Cy, que entre os seus protestos de amor de alienígena amável, insinua habilmente esta perfídia: passarinho, em Paquetá, depende da caridade pública para viver; se não fossem as bandejas de alpiste postas nos quintais, as laranjas de quitanda ofertadas aos volantes amiguinhos, já tinha tudo morrido de fome naquela ilha sáfara... Não lhe acredite pois nos elogios, nas cantatas; são bondades de estrangeiro. Assim como as de um adido de embaixada que louva as nossas montanhas e os nossos ares. No fundo, o que o paulista Coaracy deseja e ama não é a areia grossa da ilha, é a terra roxa do planalto.

Quanto ao Braga, o sutil e lírico Braga, o caso é dúbio. De mim para mim tenho que ele jamais esquecerá o Cachoeiro. Mas talvez sinta igualmente o forte apelo do asfalto. Mas será apenas o apelo deste asfalto, ou de qualquer asfalto no qual pisem homens? Sim, porque o interesse de Braga é pelos homens — pelos homens e pelas mulheres, em qualquer paisagem. Já imaginou acaso Braga solto em Paris? Braga solto em Londres? Diga-me, senhor Vão Gogo, já fez ideia do que será Braga bebendo vinho húngaro numa taberna em Budapeste? Aqueles vinhos húngaros que se bebem (ou se bebiam) por hora, com um despertador marcando tempo em frente do freguês? Depois disso, ousaria alguém esperar ver o mirífico, o fugitivo rastro de Braga em terras do Rio de Janeiro? — Concorde, pois, em que os amores de Braga não contam; aquele pedido de bolsa para estudar o Rio são lérias; ou talvez ele queira realmente a bolsa porque ainda ninguém lhe ofereceu Budapeste.

No que a mim diz respeito, confesso que gosto muito da Ilha do Governador, ou antes, — amo. Mas por causa desse cheiro provinciano que ela conserva. Por causa do arranjinho da praça da Freguesia, com sua igreja barroca, que me lembram desesperadamente a igreja e a praça de Porangaba, antiga vila de Arronches. Por causa do cineminha endomingado, igual a certos cinemas da minha infância querida que os anos não trazem mais.

Nunca olhei sem desdém as palmeiras da rua Paissandu. Não quero palmeiras literárias, dai-me os coqueiros e as dunas de Mucuripe. Dai-me cajueiros retorcidos em vez do baobá cretino do Jardim Botânico. Não troco toda a praça Paris, junto com o Russell e o Flamengo, já não digo pela praça do Ferreira — isso nunca! — mas nem sequer pelo cemitério de Fortaleza. Por falar nisso, que cemitério, amigo Vão, que cemitério! Tão triste e tão diferente. O da Cacuia, aqui na ilha, parece um pouco com ele, mas só de longe. Todo branco de chão amarelo, e uns tumulozinhos tão alvos e uns ciprestes aqui e ali — tão lindos! À mão direita passa o trem, apitando, para os mortos não estranharem o barulho das trombetas, no dia do Juízo Final. O sino da capelinha é brando como uma sineta de convento. As velhas de preto, trazendo aos ombros a fita vermelha do apostolado da oração, se espalham pelas sepulturas rezando o bendito das almas. E quando batem às seis horas, o coveiro-zelador fica segurando o portão, para fechar, enquanto elas saem e dão boa noite. Alguma até recomenda os estefanotes em flor da cova do seu defuntinho. O sol então se põe sem luxos, sem apoteose — se esconde por trás do Arraial Moura Brasil, e pronto.

Nas noites de Finados acendem lâmpadas coloridas, formando grinaldas entre as lápides. As senhoras gordas trazem cadeiras, comem biscoitos, tiram ladainhas. Os viúvos inconsoláveis, todos de preto, abrem a porta das capelas, alcovas floridas da amada morta. As moças e os moços passeiam de mãos dadas pelas avenidas e conversam de amores, num alvoroço sentimental meio necrófilo. Na cova rasa do frade santo ardem 100 velas e correm regatos de espermacete líquidos, sujando as saias das beatas ajoelhadas no saibro, ao redor. O calvário de bronze dos Albanos parece um calvário de verdade, negro e espectral em meio à claridade de quermesse. Ai, que cemitério, Vão Gogo, que cemitério. Me lembrando dele, resolvo até desistir do terreno que já escolhi numa alameda ensolarada da Cacuia. Fique-se com o seu Rio, amigo. Esta terra ingrata não terá meus ossos.

rachel-de-queiroz
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