O que nós todos somos é muito mal-agradecidos. Não vê o caso da febre amarela? Tempos atrás, ninguém vivia tranquilo neste país, com medo da febre ruim. Mormente o Rio, que era o terror dos diplomatas: esta cidade que mais tarde se chamou de maravilhosa, foi durante três séculos e meio um cemitério de europeus que consideravam vir para cá o mesmo que entregar o pescoço ao cutelo da fièvre jaune. Até se chamava a febre de “patriota”, porque estrangeiro com ela não se aprumava. E não eram só os estrangeiros: provinciano também, mal chegava na corte, a febre o apanhava quase na certa.

 

Veio Osvaldo Cruz, fez o saneamento, acabou com a febre amarela. Hoje pouca gente se lembra dele. Tem uma estação da Central muitíssimo maltratada a que deram o nome do herói, tem o Instituto de Manguinhos que também Osvaldo Cruz se chama, o que, se vale alguma coisa, é porque lá dentro existe um viveiro de novos Osvaldos Cruz trabalhando, estudando, olho ao microscópio ― ordenado curto, vida obscura e sem ambição, como convém a cientistas de verdade. Que o governo pouco se incomoda em dar cartaz para eles.

 

Outra calamidade terrível que grassava entre nós era a malária, ou paludismo, ou sezão, ou maleita. Veio o Serviço de Malária e liquidou. Sim, liquidou completamente. Em dez anos a malária está praticamente extinta no Distrito Federal e anda em vias de extinguir-se na Baixada Fluminense, que era o seu habitat predileto. E não aparece ninguém para comentar isso, para dizer um muito obrigado. Tem-se apenas uma ideia vaga de que andam por aí uns mata-mosquitos e que deve haver uns doutores chefiando os guardas. As valetas de drenagem das águas que recortam o Distrito como uma rede em miniatura de canais fluviais, ninguém indaga como é que elas brotam, e ninguém agradece os benefícios que prestam. A gente o que faz ― e eu própria, ai de mim, bato no peito! ― O que faz é ficar furiosa quando o guarda, cansado de encontrar focos e admoestar, ameaça de jogar petróleo ao poço do quintal, onde a gente tem a sua cultura de larvas de estimação, junto com a reserva d’água para os dias em que falta o abastecimento da rua. Que eles acabam não pondo petróleo nenhum, só fazem o susto; ensinam é a pôr peixinho, eles mesmos esgotam e lavam, ensinam a cobrir os depósitos, ― tratam da saúde da gente como se fosse a saúde deles.

 

Abertas as valetas, passaram a fazer dedetização. Banhar com uma solução de DDT todas as casas ― todas, sem exceção, do Distrito Federal, onde possa haver anofelinos. E parece que esse sistema de expurgo a domicílio, foi a última pá de cal no drama do mosquito da sezão. Para ilustrar o que está dito, vejamos, por exemplo, uma estatística, referente a local que conheço muito, ― estatística cuja veracidade posso atestar: a Ilha do Governador.

 

Em 1942, quando a campanha antimalárica do 3º distrito do Serviço Nacional de Malária (Vigário Geral e Ilhas da Guanabara) se tornou mais intensa, haviam-se registrados na Ilha 245 casos de febre palustre. Em 1943, esse índice ainda subiu ― chegou a 314 (a batalha estava dura). Mas em 1944 descera a 173. Em 1945 foi para 161. Em 1946 para 126. Em 1947 para 76. Em 1948: 73. Em 1949: 27. Em 1950: 3. E em 1951 ainda 3. E note-se que de três anos para cá a população da Ilha sofreu um aumento extraordinário, devido a inauguração da ponte que nos liga ao continente, trazendo-nos uma verdadeira onda emigratória de cariocas “deslocados”. Provavelmente esses 3 únicos casos não são de inoculação local ― trouxeram-nos consigo os “gafanhotos”, como chamamos aos adventícios. O que sabemos é que na Ilha do Governador já não existe malária.

 

E o milagre operado no Nordeste, na década de 30, quando o invadiu a praga africana trazida de Dacar pelos aviões da Air France? O mosquitão aeronauta desembarcou clandestino em Natal e quase deu cabo da raça dos cabeças-chatas. Primeiro se instalou à beira-mar, depois se internou pelo sertão adentro ― e era um espanto ver-se morrer gente de sezão, como se fosse de peste, naquele sertão seco onde a malária jamais andara. Lembro-me que em Russas (pequena cidade do vale do Jaguaribe onde meu irmão era promotor), houve tempo em que os óbitos chegaram a 80 por dia. Pois o serviço de malária enfrentou o bicho (chamava-se “gâmbia”) fez-lhe uma guerra total ― e deu cabo dele. Foi obra realmente extraordinária e está devidamente registrada nos anais do sanitarismo mundial.

 

Agora, o serviço de malária aqui no Rio, não contente com destruir as larvas nos depósitos de água parada, em matar os mosquitos dentro das casas com DDT, deu para fazer um levantamento de suspeitos, com exame microscópico do sangue de todos os possíveis portadores da moléstia. Andam os guardas de casa em casa, perguntando se há alguém com febre. Caso afirmativo, colhem no doente uma gota de sangue e levam a lâmina para exame no laboratório do Serviço. Só no ano passado, aqui no D. F., foram preparadas e examinadas 60.000 lâminas. Este ano, o Serviço está programando pelo menos 100.000 exames. Mas a coisa ainda tem outras sutilezas: como o adulto se locomove, passeia, viaja e assim pode transportar o hematozoário de um lugar para outro, resolveu o Serviço fazer o exame de sangue aos recém-nascidos, que é pessoal sedentário por excelência e que, se apresentar hematozoário no sangue, é sinal de que o apanhou ali mesmo onde nasceu: assim localiza-se precisamente o foco, se o houver. Só no ano passado examinaram-se no Rio 20.000 recém-nascidos, dos quais se ficou fazendo o controle mensal até um ano de idade.

 

É esta, em linhas muito rápidas, a obra do Serviço de Malária. E não só aqui no D. F., como em todo o Brasil. Creio que não existe no país inteiro outra mais eficiente. Fazer propaganda dos seus benefícios, estimular os seus funcionários com uma palavra de gratidão, é dever de todos os brasileiros. E também é um consolo saber que não somos um povo tão incapaz, como nos querem fazer pensar os maldizentes, já que estamos dando conta de um problema que afeta ainda muito país civilizado. E liquidando a praga da febre intermitente, só então poderemos começar a trabalhar direito, e conquistar para o Brasil o lugar importante que lhe está prometido na irmandade das nações. Chegada essa hora, devemos recordar de que no alicerce da nossa grandeza, entre a dos que mais trabalharam, está a contribuição silenciosa, eficiente, incansável dos homens da Malária, ― esses que, não sendo soldados, brigaram em guerra duríssima, e podem muito bem dizer como Dirceu: “Eu é que sou herói, Marília bela”...

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