Falávamos, semana passada, em Maria Candelária, funcionária letra “O”, e seus privilégios. E falávamos mormente nas dificuldades de vida dos que não são funcionários federais.

O fato é que, cada dia, fica de voo mais curto a iniciativa privada (quero dizer, a pequena iniciativa, porque a dos tubarões seu limite é infinito). Todo mundo quer ser funcionário da União, da Prefeitura do Rio, do estado de São Paulo; todo pai cria os filhos, forma-os para burocratas. Os filhos e mormente as filhas.

Ser fazendeiro, nos tempos de dantes, era quase sinônimo de ser rico. Hoje que é que é? Um pobre diabo sobrecarregado de compromissos e de dívidas. Ora, eu própria sou fazendeira; tenho um pedação enorme de terras de planta e cria no município do Quixadá. A mesma terra, parte do mesmo grupo de fazendas que fizeram milionário meu tio Miguel Francisco há cem anos atrás. E que é que me rende a fazenda? Não dá sequer para alimentar e vestir os moradores, embora eles só plantem e criem para si e nunca me tenham pago um vintém de renda. Antes, ainda produzia um pouco de lenha para a estrada de ferro. Hoje nem isso, que os trens da R.V.C. correm com locomotivas Diesel. Tem um açudinho que seca em ano mau. Podia a gente arranjar dinheiro, pedir emprestado, fazer um açude grande, arar a terra, plantar muito algodão, fazer canavial na baixa do açude, criar gado bom nos tabuleiros. E depois? Muitos vizinhos têm se metido, gastam o seu e o alheio, ficam velhos antes do tempo e a primeira estiada os deixa por terra. Sem falar nas dificuldades de transporte e de mercado. Muito mais seguro, embora mais triste, estéril e mesquinho, ficar batucando na máquina, enganando o povo com literatura à-toa, e metendo o vale na caixa do jornal a cada fim da semana....

Um fazendeiro, meu conhecido, homem muito inteligente, muito capaz, que seria um vitorioso em qualquer profissão, tinha paixão por aquilo, dedicou a vida inteira só àquilo. Morreu aos sessenta e poucos anos, deixou muita terra: uma fazenda para cada filho, um fazendão para a viúva, e uma granja no litoral, perto da cidade, para “agricultura fina” como ele dizia, em contraposição ao sertão que era para a “agricultura bruta”. Coisa de vários mil contos de réis, somado tudo. Mas acontece que a terra pode valer, como vale: mas não produz. E hoje a viúva, que não se desfez de nada, nem de um palmo de terra, que conserva tudo o melhor que pode, tem uma renda insignificante; o gadinho pouco mal dá para se sustentar a si e ao vaqueiro; plantação precisava empregar capital, e de onde tirar o capital? E mesmo que o levantasse, seria pago? A granja perto da cidade é bonita e de luxo — mas em vez de render, gasta. E a senhora milionária, como não quer vender o que herdou, muitas vezes passa aperto por causa de um conto de réis. A irmã dela é viúva também — mas viúva de um classe “O”. Tem o seu bom montepio, que vai para perto de cinco contos mensais, tem o apartamento no Flamengo que o finado marido comprou ajudado pela Caixa Econômica; não tem moradores que socorrer, nem propriedades a conservar, nem impostos a pagar, nem encargos de espécie nenhuma. No entanto a primeira é que é a fazendeira rica, latifundiária, senhora de curral e engenho; a outra é a pobre viúva que vive da pensãozinha do defunto...

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Não entendo dessas coisas, não entendo as causas de nada, estou só comentando os efeitos, que aliás entram pelos olhos de todos. O certo é que o governo só fará alguma coisa neste país se conseguir equilibrar este desajustamento entre o produtor e o consumidor. Se quem produzir tiver por onde escoar o que produz e encontrar o justo preço para esse produto. Assim como vai, está tudo muito ruim. E o resultado imediato é que, como ninguém nasceu para mártir, todos querem ser maria-candelária, saltar de paraquedas, cair na letra “O”, gozar a vida, trabalhar pouco, já que trabalhar muito só traz decepções e prejuízos.

E que é que vai ser de nós quando não se plantar mais nem se colher?

Como política eleitoral, o executivo e o legislativo, cada um por seu lado, tratam de ampliar até o impossível os quadros do funcionalismo. A Câmara do Distrito é um exemplo significativo e alarmante disso. E no fim, quando todos forem funcionários, quem é que vai produzir para dar de comer a essa gente? E de onde é que se tira dinheiro para lhes pagar os ordenados? Do imposto sobre a renda que eles próprios pagam? Será que chega? 

Ou fica como o caso daquele criador de raposas prateadas, que alimentava as raposas vivas com as carcaças das raposas que esfolava... e pretendia haver descoberto segredo do moto contínuo... pelo menos em assunto de raposa...

rachel-de-queiroz
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