Nesta data mais alta de todas da cristandade é bom a gente parar e olhar em torno de si, procurando colher um pouco de otimismo e coragem para o que vem pela frente. O que não é tão difícil, pois o Natal, muito mais que as festas do Ano Novo, nos dá uma impressão de rejuvenescimento, a presença de uma coisa segura e invariável, que volta todos os anos sem alteração na sua essência e no seu significado íntimo. O Ano Bom tem sempre a melancolia do ano velho antes dele, e todos os outros que também ficaram atrás, enterrados como ossos velhos debaixo do chão. Foi vida que se acabou com esses anos, fomos nós que nos acabamos junto com aquelas unidades, centenas e milhares, descontados e desaparecidos. Já o Natal é festa de juventude; o Natal não deixa nada atrás de si, não tem numeração que identifique um do outro, procura ser sempre o mesmo e continuará havendo enquanto houver mundo e enquanto houver gente: — o Menino não cresce, o berço de palha não muda, a Virgem não passa da sua radiosa adolescência, como não envelhecem nem anjos nem pastores, nem São José nem os santos Reis. Pode-se alterar a paisagem do mundo como se altera, levantem-se impérios e desapareçam cidades, mude-se o curso dos rios e a fisionomia de toda a terra, mas a gruta de Belém segue eterna como as estrelas, feita de pedra nua, desafiando a agitação dos séculos e a inquietação dos homens. E até aqueles que se sentem mais distantes do significado religioso do Natal, de certo modo também participam dele, contagiados das esperanças dos outros, daquele momento de inocência que desce sobre a terra, o instante mágico de união e enlevo, no qual talvez resida o segredo da misteriosa fraternidade cristã que nem dois mil anos de guerras e crimes conseguiram desfazer.

Sei que todos sentimos como uma espécie de vitória pessoal o fato de mais um Natal ter sido ganho. Não que a vida esteja boa. Pelo contrário, pior seria difícil. Mas enfim vivemos e, nestes tempos, o simples fato de viver já não é um triunfo? O que estraga a vitória é a sensação permanente de insegurança que nos aflige a todos, tanto no resto do mundo como aqui mesmo. Ninguém, neste país, ninguém, qualquer que seja a sua classe social, credo político ou religião, sente-se otimista e seguro. Os ladrões e os honestos, os sinceros e os mentirosos — deles todos o medo é a ração comum.

Os democratas, por exemplo, vivem naquele justíssimo receio de um atentado na sombra que nos venha apanhar desprevenidos, feito um ladrão à noite. Todos os sintomas são medidos e estudados e sempre parecem graves. Como se poderá, pois, dormir tranquilo ou trabalhar confiante?

Os antidemocratas, espicaçados pela ambição, temerosos de uma reação que os esmague, não sabem até onde podem chegar; acima de tudo não confiam em si próprios, — veem que o queijo é pequeno para tantos ratos. E a disputa é feroz lá dentro, não há ambiente mais estreito que o deles, mais sufocante, mais roído de intrigas; até nos mais honestos entre eles, a miserável angústia de todo aquele que vendeu a alma ao Diabo: será que o lucro valeu a barganha?

Os ricos — esses, coitados, vivem num estado permanente de susto. Chega a fazer dó o medo que eles têm — e por isso se esbaldam e tresvariam, e cada um lá no seu íntimo desconfia de que talvez esteja vivendo os últimos dias de Sodoma e Gomorra. Tentados pela sedução do lucro fácil e ao mesmo tempo sentindo a insegurança dos tempos, a ameaça de uma brusca reviravolta que os destrua (ou destrua o que para eles vale tanto quanto a vida) são ao mesmo tempo arrogantes e abjetos, nunca sabendo a hora certa em que devem empunhar o chicote, ou fingir contrição, batendo no peito. A pouca consciência que têm não lhes prevê nada de bom; e já não sabem que mágicas inventam para propiciar e afastar as forças desconhecidas que lhes rugem debaixo dos pés.

E, por fim, os pobres. Para eles, pelo menos, as necessidades e os sofrimentos já não são novidades. Já sabem que não podem esperar nada ou quase nada, e já não têm decepções. O Natal para eles é, como sempre, um simples número vermelho na folhinha, sem dinheiro e sem festas. No máximo os miseráveis desfiles das distribuições chamadas de caridade — como se fosse obra de caridade promover aquele esperar humilhante e sem fim nas filas ao sol e à chuva — no fim de contas para quê? Um saco de papel com um punhado de gêneros e um brinquedinho de plástico barato para o filho.

Já ninguém pobre pensa na galinha assada à ceia ou o punhado de castanhas da obrigação. E roupa nova para a missa do galo — quem pode mais vestir a família para a missa do galo? Vai-se de qualquer jeito, quando ainda se vai. Porque o desamparo e a nudez não ajudam a devoção e é mais fácil ficar em casa do que sair sem transporte, sem dinheiro e, mormente, sem esperança de nada...

Leitor meu irmão, na tarefa que empreendi de exumar papéis velhos, descobri esta crônica escrita para o Natal de — imagine! — 1951... Transcrevo-a sem alterações, que não seriam necessárias. Nem comentários. Porque se ela houvesse sido escrita boje, provavelmente não estaria mais atual, o caso da gente dizer, contradizendo o poeta: nem mudou o Natal, nem nós mudamos...

Boas Festas, apesar de tudo, irmão!

rachel-de-queiroz
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