Português já de si é uma raça bonita, mas meu tio Adriano é o português mais bonito que eu conheço. Desde quando chegou para se casar com minha tia predileta, na nossa casa do Alagadiço, encantou a moçada e as crianças. Nesse tempo era mais pouco, como a gente fala, querendo dizer mais magro: o perfil bem talhado, o belo cabelo, o sorriso apertando os olhos, a cor rosada, a estatura esbelta — isso que os americanos classificam nos seus galãs como latin looks.

Menino quase, meu tio Adriano emigrou para o Pará; começou caixeirinho, como é de regra. Trabalhou, subiu, montou firma própria, enricou, criou família brasileira. O clima quente do Pará não lhe alterou as boas cores nem o sorriso; o dinheiro, a folgança de patrão apenas lhe deram leve corpulência, compatível com o estado; nem os 50 anos de Brasil lhe alteraram de dar na vista o bom sotaque trazido da terra. Sempre recusou se naturalizar: acho que considera a operação uma espécie de pleonasmo. Tanto é que quase quebra a cara de um burocrata que, em documento oficial, o classificou de estrangeiro. Com todos os diabos, se ele não era brasileiro, quem o seria?

Uns tempos destes, após esse meio século de ausência, a família o convenceu a dar um passeio a Portugal, rever a aldeia e os parentes. Ele foi, viu, achou muito bom, mas com uma semana já estava a rebentar de saudades do Brasil. E, como os seus de lá não lhe compreendessem aquela ingrata urgência de retornar, e insistissem para que ele ficasse mais tempo, uma bela madrugada o tio escapou pela janela, feito moça fugida, deixando uma carta em cima do travesseiro; e quando a gente de cá ainda o fazia na boa terra, a tomar o seu vinho verde e a comer a azeitona nova, já Adriano estava a telefonar do Recife! 

E assim lhe ia a vida como a de todo o mundo — próspera, monótona, trabalhosa — filhos doutores, casada a filha, a linda Gracinha, quando a ele, como bom português deu-lhe gana de meter a sua lança em África. Se África, para os portugueses do Pará, chama-se Ceará, no geral. Aliás, além de vir para casar, ele já andara aqui. Em 1919, ocasião da grande seca, minha avó e sogra dele o comoveu com apelos para se arranjar trabalho com que os caboclos ganhassem o que comer, naquela emergência. Adriano veio, junto com o cunhado, construir um grande açude na fazenda Guanabara, pertencente a outro da irmandade. Toda a seca feroz ele a tirou no sertão, trabalhando feito doido, cavando terra, levantando parede, gritando com os cassacos, exigindo um ritmo de trabalho que caboclo nunca viu, turbulento, incansável, generoso. Ninguém como ele para dizer uma boa palavrada portuguesa para xingar vó ou mãe se necessário — e isso junto com o clássico coração de ouro dos sujeitos de sangue quente.

Finda a seca, o pessoal voltou aos seus roçados, e acabou-se a razão de estar aqui. Meu tio Adriano retornou ao Pará, para a sua casa de comissões, para uma aventura no Araguari onde comprou fazenda, navios, fez diabo outra vez. Mas aí por 1948, quando já devia estar pensando em preparar a aposentadoria, veio-lhe a tal cócega de começar coisa nova. Uma aventura diferente — outra espécie de trabalho, que viver para ele é trabalhar. Por acaso o cunhado dono da Guanabara, onde ele começara o açude, estava querendo vender a fazenda. Tio Adriano comprou a terra e cá veio meter a sua lança em África.

Sertão brabo, catinga daquelas. Tudo que o novo dono encontrou foi o açude no meio, a rústica casa grande muito deteriorada, um barraco de morador, seis rebentos de banana-couruda, alguma raiz de algodão mocó. E aí o português se soltou. Danou-se a trabalhar; madrugadinha já estava no alpendre, começando o dia. As obras do açude pareciam coisa de americano. A casa grande reformada, assoalhada, ampliada, ganhou luz elétrica, rádio, geladeira, que o tio não dispensa a sua cerveja gelada na hora do calor, o seu bom vinho branco para regar o peixe — e as curimatãs da terra até estranham a companhia! Levantou casas, armazéns, silos, uma pequena serraria. Escola. Trouxe trator e outras máquinas. E enquanto isso o paredão do açude subindo. Começou a plantar o sítio. Quando importou mudas de laranja da Bahia, tangerinas, limas-da-pérsia, o pessoal gozava: “Aquilo é a catinga mais inferior que tem, só dá marmeleiro e olhe lá! Não dá nem limão-galego”! E ele plantou limão-galego também. Só faltou plantar maçã e pera para chatear os maldizentes; e se plantasse era capaz de dar, com aquela mão abençoada que ele tem. Sem falar nos coqueiros, mangueiras, cajueiros, todas essas coisas que já são velhas aqui e só carecem de um pouco de rega. E o açude subindo. Aí o tio Adriano deu uma coisa, e fez a maior gauchada de todas: da sua fazenda no Araguari trouxe para a Guanabara dois casais de búfalos. Os parentes não se continham. Seu marinheiro maluco, búfalo é bicho do Marajó, só vive dentro d’água, tem parte com jacaré. Pois os búfalos vão vivendo razoável, se contentando com a frescura do açude, já aumentaram, já criaram até folclore: muita gente conta façanha deles, de noite, em redor da fogueirinha de espantar muriçoca.

Agora o açude está pronto. Vai ter missa inaugural, grande festa com boa comedoria à portuguesa. O sítio da fazenda Guanabara já não é mais nem um sítio — é um condado. Parece que agradecendo o trato e a confiança, tudo produz descomunal. Cada laranja da Bahia do tamanho de um coco, cada tangerina do tamanho de uma laranja. As bananeiras fazem mata, os coqueiros são bosques. Tudo que é fruta boa desta terra e de outras lá cresce e prospera. O algodão enche os armazéns, o feijão, o milho e a farinha dão para virar dum ano para outro quando há seca, como sucedeu em 58. O gado raceado enche os olhos.

*

Sim, meu tio Adriano plantou a sua lança em África. E tão bem plantada que ela deu flor e deu fruto — e acima de tudo dá exemplo. Naquela catinga deserta brotou um jardim. E agradecendo esse jardim e esse exemplo, e o bom sangue português com que ele veio renovar o nosso preguiçoso sangue de mamelucos, e pelo muito amor que lhe tenho, desde quando menina de seis anos, vestida numa gola marinheira, ele me botou no colo e me convidou para fugir com ele para Belém do Pará —, por tudo isso, meu tio, aqui lhe trago o meu pequeno buquê para a sua festa de inauguração.

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