Recebo uma carta de moça: ela conta, cheia de candura juvenil, o encontro que teve com o seu escritor predileto e diz que, de tão emocionada, mal conseguiu abrir a boca, e que a mão lhe tremia ao apertar aquela mão privilegiada, “responsável por tanta página maravilhosa”...

Privilegiado. Sim, provavelmente o próprio grande escritor, embora não sendo um fátuo, participa da opinião da moça, e não se considera um mortal comum. Todo artista, quando não erige a si próprio um pedestal, pelo menos se isola, sem se querer misturar com as demais raças dos homens, de quem não se considera um igual. É alguém diferente, é um marcado pelos deuses, com direitos mais amplos. Sente-se um príncipe, mesmo que ande roto e com fome, mesmo que não saiba sequer o nome de pai ou mãe. Que a sua senhoria não vem do berço nem do estado, nem de nenhum sinal visível, ― vem dessa coisa intrínseca que ele traz dentro do peito e se revela num luzir de chama, num toque de sino de prata, e lhe guia a mão, e lhe inspira a língua.

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A mão do padre levantava a hóstia no momento da consagração. Por baixo da foto a legenda dizia: “Missa solene na Candelária, celebrada pelo Cardeal Leme”. Ou seria o Cardeal Arcoverde? Faz muito tempo, sei que eu era menina, e o que me impressionou não foi o nome do cardeal celebrante. Chocou-me fundo a audácia do repórter, imagine fazer a chapa naquela hora sagrada e quase temível, quando todo mundo, de joelhos, curvava a cabeça, batia no peito e baixava a vista para o chão, em reverência a Nosso Senhor Vivo. No colégio se contava que um homem ficara cego só por fitar atrevidamente a hóstia consagrada, e quando acaba aquele homem de jornal não só olhava, mas tirava retrato!

E até hoje essa impressão de meninice, a me dizer que o nosso ofício se alimenta de tudo, até do sacrilégio, não mudou essencialmente. O homem que vive do favor público exibe o que pode, até os seus segredos mais íntimos, até as lembranças mais sagradas. Sagradas? Ora, para ele nada é sagrado. Tudo é assunto, notícia, tema de história, material de trabalho. Olha aquele romancista que acompanha em prantos o enterro do seu irmão predileto. Com um olho ele chora, mas com o outro espia o risco da morte na face descorada, o grotesco dos ritos fúnebres, a pancada da terra a bater nas tábuas de pinho, o ar de chuva no céu, a pintura manchada de lágrimas no rosto da viúva. Espia e anota mentalmente e, não tarda, aparecerá um conto ou novela onde se mostre um defunto, e uma tarde no cemitério num ar brusco de chuva, e uma viúva a chorar.

Ele, por isso, diz que é sincero e as gentes, os leitores, lhe batem palmas pela sinceridade. E então aquela sinceridade, pelo amor do aplauso (ou por uma irrefreável necessidade de exibir-se?) cada dia mostra mais, ignora qualquer limite. Alega que o público quer ver tudo e saber tudo. E o homem que escreve, então, vai-se despindo, até o último pano, igual à rapariga do strip tease que, pouco a pouco, vai arrancando a roupa do corpo bonito, sem se deter sequer naquilo que a reportagem policial costuma chamar pudicamente de “peças íntimas”. Mas a roupa não chega, o público do homem que escreve parece que é mais exigente do que a plateia dos shows de “nu artístico”: ele então abre a arca do peito e mostra o coração batendo, rasga a barriga e exibe as entranhas. Mostra-se a qualquer hora do dia ou da noite, dormindo e acordado, rezando, chorando, comendo ― até na hora do amor, até na hora do parto ― se o escritor é mulher.

Em busca dessa sinceridade, Jean Jacques não se peja de contar que obrigava a pobre Tereza a enjeitar os filhos dele na roda dos expostos. Dostoievsky esmiúça até a exaustão os seus espasmos de epiléptico, a terrível embriaguez do seu vício incurável ― o jogo. Gide expõe, perversamente, as nuanças mais íntimas do seu desvio e, achando pouco, não nos poupa sequer o espetáculo de frustração e ressentimento que é a vida da triste Emmanuèle. O’Neil, esse arrasta a família toda para a ribalta ― a mãe morfinômana, os irmãos, o pai alcoólatra.

E não se diga que eles foram grandes a despeito disso. Não, eles se chamam grandes precisamente por causa disso.

Os mais pudicos, se se pode aplicar a ideia de pudor a quem vive de tal ofício, os mais pudicos contentam-se em não aparecer na primeira pessoa e transferem para um personagem supostamente imaginário aquilo que eles não têm coragem de contar de si próprios. Mas o artifício é transparente, jamais engana o leitor curioso. E nem falta o grande exército de críticos, comentadores e biógrafos, para esmiuçar o leve disfarce, e suprir a palavra não dita, ou interpretar a imagem velada.

E para onde vai tudo isso? As confissões mais doídas, as saudades e os remorsos, os desgostos, os erros, as horas negras e, muitas vezes, os crimes? Vai para um altar, para ouvidos de amigo, para um coração confidente? Não, queridos, vai para um balcão. Vai ser vendido, feito papel impresso ― jornal, revista, livro, bilhete de teatro. Antigamente, chegava a ser retalhado por cinco tostões ― e menos, pois havia jornal de dois tostões. Hoje subiu de preço, mas ainda é barato, baratíssimo. E assim mesmo baratíssimo, fica a se estorcer nas vitrinas e a se esganiçar nos palcos e não acha quem compre.

rachel-de-queiroz
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